sexta-feira, 3 de julho de 2009

A liberdade prostituída


De maneira premonitória, num artigo escrito há alguns dias e centrado no conceito de liberdade, Antonio Álvarez-Solís refere como, “na Europa que diz protagonizar as construções do humanismo, as sevícias com que se trata indivíduos e nações são perfeitamente visíveis e geram um horizonte moral putrefacto”. Esta reflexão adquire especial vigência nestes momentos, quando conceitos como “ordem” ou “segurança” pesam mais que o de “liberdade” na balança imposta pelos poderosos. Além disso, Álvarez-Solís aplica essa reflexão à realidade do Estado espanhol e às suas diferentes nações.

Não há nada que agrave tanto uma recta consciência como observar à sua volta os restos de uma liberdade prostituída. E essa é, precisamente, a história da nossa época: uma história de consciências agravadas. Os últimos cem anos caracterizaram-se por uma crescente incapacidade para reagir face a esses agravos, que foram muitas vezes recebidos em silêncio como verdades inevitáveis ainda que dolorosas e aceites até se converterem na razão suficiente do nosso modo de existência. Foi um século de ruína da personalidade, um século de submissão. Uma vontade substituta de aceitação suplantou a vontade real de liberdade e, com isso, a liberdade libertadora foi-se apagando como máximo valor criativo da sociedade. Da liberdade diz Ferrater no seu Diccionario de Filosofía que há-de entender-se basicamente como possibilidade de autodeterminação, como capacidade de escolha, como ausência de interferência, como libertação perante alguma coisa... Uma característica identificadora da verdadeira liberdade, também arruinada nessa cerimónia da confusão a que se entregou o poder, é a sua frutífera indeterminação, isto é, a sua possibilidade de iluminar o mais audaz e, sobretudo, a sua fragilidade perante qualquer manipulação que queira subordiná-la a um interesse opressor. A liberdade é-o sempre que se dê em plenitude. Não se é livre se a liberdade é matizada ao serviço de um poder institucional, se é viciada com qualquer tipo de unilateralidade. A liberdade é um recipiente paradoxalmente sem paredes. Muito menos suporta a liberdade a violência que a ponha a brilhar ou a qualifique. A plena liberdade necessita no terreno político, por exemplo, da plenitude de exercício por parte da plenitude da cidadania. Enquanto um cidadão não puder expressar aquilo em que acredita, a liberdade torna-se impossível. Não há limite para a liberdade como tal a não ser, em qualquer caso e agindo com prudência infinita, limite para os resultados da mesma, sempre que esses resultados impeçam a livre expansão da liberdade, que há-de subsistir sempre. Essa realidade de “ilimitação” que a liberdade contém é absolutamente imprescindível para que a prática ideológica possa desbravar caminhos e criar rotas de expansão humana. As ideias são fruto dessa liberdade infinita na sua essência e o ser humano é fruto das ideias. Se isto não se aceita assim, torna-se de imediato a prostituição da liberdade.

É lamentável o actual espectáculo que todos os poderes protagonizam na degradação da liberdade. A carência de nobreza essencial no exercício político, tão abrumadora hoje, e a escassez de contenção formal nesse exercício desvelam a agonia em que se debate a liberdade. Centenas de povos são degradados na sua existência, milhões de indivíduos estão reduzidos à servidão material e espiritual. Não faz falta que procuremos o exemplo em terras afastadas da nossa realidade geográfica. Na Europa que diz protagonizar as construções do humanismo, as sevícias com que se trata indivíduos e nações são perfeitamente visíveis e geram um horizonte moral putrefacto. Nações que tiveram uma existência vigorosa como donas de si mesmas jazem hoje agrilhoadas e hão-de recorrer a uma luta cruel e extrema para se salvarem da destruição final. Espanha contém exemplos facilmente verificáveis disto que afirmamos. Ao serviço destas injúrias e com a finalidade de lavar a cara do sistema, dispõe de nutridos repertórios de leis com a intenção de tornar éticos todos os processos de agressão. A legalidade substituiu o direito e os torpes argumentos circunstanciais empobrecem até à raiz o discurso moral. Uma decisão de violência e menosprezo ensombra a actividade das instituições, povoadas de sujeitos que reduziram o valor da eficácia a uma desprezível pretensão de justiça. A paisagem é desoladora. Agora mesmo a nação basca assiste a uma bárbara exibição de perseguições tão grosseiras como elementares. O ar basco está povoado até à náusea de restrições e exibições de um poder destruidor de toda a tentativa de vida realmente nacional. Governa-se – mais exactamente, manda-se, ordena-se – a partir de um lugar remoto estrangeiro e exibem-se as decisões políticas como uma pretensa arte da razão que torna mais dolorosa a prática opressora. Nem sequer se emprega um certo pudor nas formas externas. Inclusive, gentes do país maltratado juntam-se ao iracundo ataque externo por meio de vulgaridades intelectuais que arruínam qualquer tipo de entendimento social, convertendo em frenético atrito com ira toda a aproximação. As medidas tomadas pelos governantes, com assoladora negação de qualquer coisa anteriormente realizada, e as precipitadas operações de limpeza em corpos e instituições declaram a pobreza moral e humana das iniciativas que se amontoam com urgência no despejo do basco. Tudo ressoa no vazio e declara uma vontade incapaz de entendimento com o genuinamente euskaldun.

Mas aonde se pretende ir com este tipo de actuações? Contrariamente ao que crêem os seus protagonistas, o exercício de tal política junta a gente basca na sua sorte e reforça a sua vontade de resistência. A violência exercida para ordenar, desordena até limites dolorosos. Pretender a destruição do nacionalismo euskaldun mediante uma violência continuada e áspera implica o desconhecimento da história e do desenvolvimento da chamada questão basca. Inclusive, essa política de acosso desvela nos seus protagonistas uma ignorância profunda acerca dos valores morais que habitam o espírito basco. Isto é, tal política confirma o seu afastamento da realidade popular de Euskadi. É uma política recebida pela maioria basca como uma ocupação que garatuja mal o pretensamente útil sobre o essencial. Resulta vão, e o que é pior, resulta radicalmente inconveniente sustentar que Euskadi chegou até hoje a cavalgar sobre ruinosas políticas povoadas de um insensato nacionalismo. Não é são para o equilíbrio social ocultar que Euskadi ou a Catalunya são povos que tentaram, na área peninsular, protagonizar a única tentativa real de modernidade no contexto do Estado espanhol. Se aqueles que governam hoje querem agarrar nas suas mãos o pragmatismo utilitário como coisa própria, convém dizer que esse pragmatismo revela a falsidade do que foi e é o discurso espanhol. Espanha continua a ser agressivamente rural no seu espírito e decididamente barroca no seu discurso vital. Digamos de passagem que esse discurso foi exportado acusatoriamente com a prática de acções exploradoras da banca e grandes empresas na América do Sul. Com isso voltou a piorar a memória histórica.

Mas a questão não se pode reduzir a esta constatação da fibra antimoderna de Espanha. Isso é coisa vista. A questão é como se vai sair deste intrincado bosque de lianas e águas pantanosas. Não se sairá aumentado as caçadas nessas águas, por mais que se povoem de crocodilos colaboracionistas. Madrid há-de superar essas batalhas ganhas e essa guerra perdida mediante uma reflexão profunda sobre o que significa a liberdade como material básico para a construção de uma sociedade mais habitável. Se houvesse em Madrid algum tipo de governo intelectualmente ordenado, seria rápido, creio, superar a dolorosa violência existente. Mas resta uma última questão: é desejada em profundidade essa superação, que obrigaria a um honrado diálogo inter pares e com aceitação leal dos resultados? A pergunta é já património comum de uns e de outros; mas não o é ainda a resposta possível.

Antonio ÁLVAREZ-SOLÍS
jornalista

Fonte: Gara