domingo, 1 de março de 2009

Uma democracia de BD


As circunstâncias em que se desenrolou o processo eleitoral que hoje culmina nas urnas servem de base ao argumento de uma BD ambientada pela Lei de Partidos e que o autor do artigo narra quadro a quadro. No último desses quadros desenha um «Parlamento ilegítimo» e o intercâmbio de cromos para formar governo.

Somos a geração da BD. Através dela abriram-se-nos as portas ao mundo. Crescemos ao ritmo de cada nova entrega de Asterix e aí soubemos que “estes romanos estão loucos”. Aprendemos a praguejar com o capitão Haddock, a divertirmo-nos com Spirou e quisemos ser mais rápidos que a sombra de Lucky Luke. Havia nas estantes da biblioteca uma BD hoje sugestiva: as aventuras do infame vizir Iznogud. O nome do personagem, um jogo de palavras sobre a oração inglesa “is no good”, revela a sua natureza: um ser traiçoeiro e invejoso que se serve dos métodos mais miseráveis para cumprir a sua máxima ambição: “Ser califa na vez do califa”, arrebatar o posto ao tonto e bonacheirão califa Harun El Pussah.

Acabamos de sofrer um processo eleitoral de BD, numa atmosfera desenhada pela Lei de Partidos. Uns querem “ser lehendakari na vez do lehendakari”, enquanto este se agarra ao seu cargo por uma questão de nomeação quase-divina. Outros também aspiram a “ser a esquerda abertzale na vez da esquerda abertzale”, tentando como aqueles rentabilizar os juros que outorga a aplicação daquela lei.

Uma BD chamada «Eleições 09» em dez quadros. No primeiro apresenta-se uma candidatura de eleitores que recebem um apoio importante em assinaturas. Para o segundo quadro, alguns já os tinham como ilegais e protestaram pelo “desafio ao estado de direito” que constituía a simples apresentação. Outros com mais boa vontade mas mais ingénuos aconselharam-nos a apresentar “listas brancas”, o famoso jogo da segregação e do apartheid. Também as houve.

No terceiro quadro, os tribunais impõem a trama: nos seus “fundamentos jurídicos” (sic) negam ter causado uma restrição ao direito de sufrágio passivo ou à liberdade de expressão dos candidatos, que se mantém intacta. Dizem que estão a regulamentar o direito de acesso a cargos públicos, e aí detectaram pessoas que escolheram mal o instrumento para veicular esse direito: escolheram partidos contaminados, infiltrados, sempre negros. Podem pensar o que quiserem, até exercer os seus direitos individuais, mas não juntos. Para o fazer correctamente, devem (des-)integrar-se noutros partidos limpos, que para isso há o Aralar.

Quarto quadro, a força tragicómica, a interpretação histriónica da realidade de Garzón, o bobo: detenções arbitrárias entre cornos de muflões mortos e ataques de ansiedade. Quinto quadro, o drama: o eterno califa diz-nos: “num estado de direito há que confiar na Polícia, na Justiça e também na responsabilidade dos líderes políticos para resolver as coisas através do diálogo”. Sim, senhor, outro cheque em branco para vocês... para quê? Patxi Zabaleta supera-o: “Ao Batasuna, ajuda-o Garzón, o Estado e a Polícia”. Que miséria!

Sexto quadro, irrompe a cavalaria: cai um relatório das Nações Unidas que fala da “encosta deslizante” pela qual se lançou o estado espanhol e que, como uma avalanche, ganha velocidade e leva tudo à frente, sem que ninguém saiba como, quando e onde se deterá. Sétimo quadro, ninguém se toma por destinatário, adesão ao guião original. Não convém aos nossos próceres que lhes dêem lições de democracia e menos ainda em plenas eleições: a campanha continua como se não se passasse nada. Fala-se do costume, sabendo que aí o compromisso adoptado sai de borla: irão baixar impostos, resolver o problema da habitação, impor medidas que certamente resolverão a crise, douram a pílula a jovens, pensionistas, empresários ou trabalhadores porque hão-de resolver todos os seus problemas sectoriais. Mas se todos eles tiveram experiência de governação, num ou noutro lado! Que fizeram até agora?

Oitavo quadro, eles também possuem a sua própria cavalaria: a Ertzaintza ataca violentamente uma manifestação em que os cidadãos brandem boletins brancos. Hão-de estar presentes em toda a campanha retirando cartazes, interceptando boletins, fustigando os que pedem certo voto crítico. Nono quadro, dia de eleições com sessão contínua na ETB, a festa da democracia. Final feliz? Não, décimo quadro e epílogo: forma-se um Parlamento ilegítimo e intercâmbio de cromos para formar governo. Onde disse durante a campanha “farei” agora digo “amén” e sobre o que não prometi agora não me exijas. Mais quatro anos de democracia zero.

Dizia M. Foucault que “é feio ser digno de castigo, mas pouco glorioso castigar”. Por isso ocultam aos olhos da sociedade os castigadores e os castigados, e encerram os primeiros em tribunais e os outros em penitenciárias. Mas há uma modulação sobre a primeira premissa: e se se dá o caso de não se ser digno de castigo? Qual é, então, a razão de ser do castigador? Aqui aborda-se uma questão essencial: a dicotomia entre legalidade e legitimidade. De acordo com a legalidade espanhola, o dissidente político é digno de castigo – e de que maneira! – mas não o é com base numa legitimidade universal, ao estar amparado pela liberdade de opinião e expressão. É ainda menos glorioso castigar quem só pretende participar numa instituição para exercer o direito a expressar-se, base do “fazer política”. Um estado – ou um político com acesso aos meios de castigo – que trata os cidadãos discrepantes como inimigos não se deveria surpreender com o tratamento recíproco, ou seja, que os cidadãos vejam o estado – ou o político concreto – como o vilão da BD.

Nenhum deles abordou o verdadeiro nó górdio da coisa: uma reflexão sobre uma nova interpretação da democracia, da gestão da res publica, realmente baseada nas decisões adoptadas pelas cidadãs e pelos cidadãos. Uns, porque não os querem nem ouvir. Outros, porque só os querem consultar para as suas coisas. É mais fácil deixar-se levar, fazer política de costas voltadas para os problemas, obviando que o que está em jogo hoje neste país é uma profunda regeneração democrática. Arruinaram conceitos tão simples como “um cidadão, um voto”, rebentaram com o exercício dos direitos civis e políticos de todos e todas, esgotaram o limite de credibilidade das suas instituições. A responsabilidade do político comprometido – não destes – situa-se na atribuição de uma via política plausível às legítimas aspirações da cidadania. Em enfrentar uma mudança não de fachada, de caras sempre sorridentes, mas em valores, na forma de fazer política, numa nova dimensão da soberania popular, hoje sequestrada pela soberania dos líderes. Assim, reflectidos nesta realidade de BD, a crise de legitimidade dos novos califas não pode ser maior, a brecha entre a casta dirigente e o cidadão, a distância entre a instituição e a rua é quilométrica. A convicção popular sobre a incapacidade dos políticos profissionais para encarar problemas que parecem simples de resolver é profunda e arraigada.

Sendo rapazes, aprendemos que havia “uma aldeia de irredutíveis gauleses que resistem hoje e sempre ao invasor, com uma poção mágica que os torna invencíveis”. O cérebro, de que falava Evaristo. Eu… vou votar o invotável.

Julen ARZUAGA
Giza eskubideen Behatokia / Observatório de Direitos Humanos

Fonte: Gara