terça-feira, 2 de março de 2010

Escrever a partir do esquecimento


Uma das coisas com que mais à vontade me sinto na minha vida é a amizade que durante muitos anos mantive com Mario Benedetti. Começou em 1981 após uma entrevista numa rádio estatal por ocasião da publicação do seu livro Viento del exilio. Gostei da sua maneira de dizer os versos e da orgulhosa nostalgia com que falou do seu país, e também da firmeza e do compromisso com que reivindicou as ideias que o tinham levado ao exílio.

Graças ao meu trabalho, àquela conversa seguiram-se muitas outras. Algumas formais e outras mais informais, na sua casa de Madrid, com a sua mulher Luz, no andar da Rua Ramos Carrión ou em Montevideu, em 1987, quando terminou a ditadura militar, na primeira redacção do diário Brecha. Com ele, não precisava de ser alguém transcendente, nem de ser uma erudita em literatura, no cinema da nouvelle vague ou uma nostálgica discípula de Sartre. Só era preciso sentarmo-nos, sermos nós mesmos, sentir a presença dos seus livros, ouvir, conversar e então as ideias sobre a vida fluíam em cada golo de café com a intensidade de um texto recém-escrito. Benedetti costumava contar que, antes de os militares terem usurpado o Governo do Uruguai, uma das grandes atracções de Montevideu eram as livrarias. Nunca fechavam. Os livros eram o reclamo da noite, do último bar aberto, o encontro impontual dos solitários numa cidade adormecida, imersa nessa patina decadente que a cultura deixa quando a opulência se foi. Em Novembro de 1987, as livrarias da Avenida 18 de Julio tinham mudado. Fechavam à meia noite e, embora guardassem o tempo dos livros velhos, surgiam mais novas, tinham recuperado a curiosidade pelo futuro e os textos dos escritores, encarcerados ou perseguidos pelos militares, regressaram ao seu lugar para contar a dor da tortura e da desesperança do exílio. Benedetti foi um desses autores. Uma manhã, passeando pela Avenida em direcção ao Boulevard Artigas, recordou a solidariedade e o entusiasmo com que os montevideanos receberam os exilados republicanos no final da Guerra Civil. «Las aceras estaban llenas de gente, saludando con el puño en alto». E então prosseguiu falando do outro exílio, do seu, do desarraigamento, desse adeus clandestino que não tem destino e parece sempre eterno. E tudo por querer um Uruguai mais justo, por apoiar o movimento Tupamaro, por lutar contra o militarismo norte-americano, por defender Cuba, por escrever num semanário de esquerda, no Marcha, encerrado pela ditadura em 1974.

Conto tudo isto, acima de tudo, porque quero expressar o meu respeito e afecto por Benedetti, como poeta, como intelectual e como pessoa. Penso que as suas ideias, a sua coerência e o seu compromisso corajoso com o seu país e com o tempo que lhe calhou viver deveriam ser hoje todo um exemplo para muitos dos intelectuais que pretendem compor o mundo. É verdade que em 1994 foi uma das vozes uruguaias que se ergueram contra a extradição de três cidadãos bascos e contra a repressão que o seu Governo desencadeou nas ruas de Montevideu. Todavia, devo reconhecer que sempre me doeu um pouco o seu distanciamento sobre o que se passava em Euskal Herria. Ainda hoje me custa entender o seu silêncio.

Às vezes uma frase leva a uma reflexão e esta a uma dúvida, a um pensamento que não chegamos a entender. Foi o que me trouxe de volta a lembrança de Benedetti e o que me ocorreu ao ler a carta que o poeta Juan Gelman escreveu a favor do juiz Garzón e contra o seu processamento relacionado com os desaparecidos da Guerra Civil. «...En la Argentina - escrevia - habemos jueces que violan el derecho de gentes, el derecho humanitario internacional, los derechos de los agredidos, la moral y la ética más corrientes, movidos tal vez por viejas complicidades. El juez Garzón no pertenece a esta tribu».

Em Euskal Herria é duro ler estas palavras num artigo escrito por um homem, excelente escritor seguramente, que fez do ofício de escrever um compromisso inquebrantável. Activista político desde muito jovem, militante e porta-voz na Europa de uma organização armada argentina, com dois filhos assassinados pelos militares, pode-se afirmar que Gelman é um homem que sabe tudo sobre a dor da repressão, um homem que ainda se rebela contra a injustiça e o esquecimento da barbárie militar, um poeta que um dia escreveu «se hinchan los ojos con las cobardías de este tiempo / sentadas en sillas de su olvido...» e que, no entanto, hoje... crê na ética de Garzón e o defende.

Sem dúvida, existe no ideário de cada qual um leque de causas para que Benedetti, Gelman e outros intelectuais, incluindo Eduardo Galeano, cometam uma omissão na sua crítica ao sistema, na sua solidariedade e esqueçam que nesta parte da Europa existe um povo sem direitos que luta pela sua independência e contra os desastres desse mesmo capitalismo que durante décadas pretendeu subjugar os seus países. Reconhecendo a sua integridade e o seu compromisso e sendo merecedora do nosso respeito a sua coerência, é preciso chamar-lhes a atenção para o seu esquecimento e dizer-lhes que a democracia daquilo a que eles chamam com certo eufemismo a «mãe pátria», a que publica os seus livros, os seus artigos, louva a sua honradez militante e um dia acolheu as suas reivindicações e o seu exílio, possui um lado negro em que se construiu uma alcova de infâmias políticas onde o pensamento livre se considera perigoso, as ideias um património caduco e a sujeição de Euskal Herria uma razão de Estado. Como nos seus países, na democracia do Estado espanhol a Polícia tortura e os juízes fecham os olhos. Os políticos fazem os seus cambalachos para promulgar leis fascistas e anticonstitucionais e os juízes emudecem. Violam-se os direitos fundamentais dos pactos internacionais detendo dirigentes políticos, jovens pelo mero facto de militar numa organização juvenil, isolando e prolongando as condenações dos presos até à pena perpétua e os juízes, com Garzón à cabeça, voltam a calar. Denuncia-se o sequestro e o desaparecimento de militantes independentistas como Jon Anza e a magistratura espanhola bate com a porta à verdade, acomoda-se nos seus gabinetes e, enquanto os tribunais assinam penas de 18 anos de prisão por se fundar ou dirigir um periódico, em Euskal Herria os que dizem proteger a democracia amanham as eleições e formam um governo ilegítimo ao gosto do nacionalismo espanhol.

Dizem que as coisas são da cor da lente com que se observa a vida. Não sei exactamente com que tonalidade Juan Gelman olha para Euskal Herria e para o juiz Garzón, com que matizes a contemplava Benedetti quando me escreveu «vos sos mi amiga, pero no me preguntes sobre la política del País Vasco». O da distância, o da desinformação, o do desconhecimento imposto da verdade, da conveniência editorial...? Não sei, e talvez também não o queira saber. Seja qual for a cor, certamente não é a verdadeira.

Contudo, como tenho vindo a insistir há algum tempo noutros artigos e a partir da minha modesta opinião como membro da esquerda abertzale, mantenho que este tempo não é para tristezas colectivas nem para desilusões ou dores individuais, é tempo de assumir e entender o passado e de nos enamorarmos pelo futuro. Como se afirma no documento «Zutik Euskal Herria», «é hora do compromisso, é hora de dar passos». E também a nível internacional. Dar passos firmes e acertados para que homens e mulheres, colectivos e intelectuais como Juan Gelman acabem com o seu esquecimento, voluntário ou involuntário, e possam analisar a situação de Euskal Herria desde a perspectiva real e compreender, em profundidade, as reivindicações e as propostas políticas da esquerda abertzale para a resolução do conflito. Passos coerentes e corajosos que desmontem as velhas e novas patranhas informativas de Madrid e ponham a descoberto a baixa qualidade democrática do poder judicial, da índole política do Governo e, também, do poder legislativo espanhol. Passos que, como povo, nos abram as portas principais da comunidade internacional. Dignidade, razões e direitos não nos faltam. Na quinta-feira, numa conferência realizada em Orereta, o advogado sul-africano Brian Currin aprofundou este terreno e mostrou-se optimista, o que demonstra que o processo democrático, proposto de forma unilateral pela esquerda abertzale em «Zutik Euskal Herria», caminha por um futuro possível em que já ninguém poderá escrever cartas a partir do esquecimento. Então, tal como agora, «Escribo en el olvido» continuará a ser um dos poemas de amor mais belos de Juan Gelman.

Amparo LASHERAS
jornalista
Fonte: Gara