domingo, 6 de dezembro de 2009

«Eskubide guztiak»


Embora Alvarez-Solís não tenha podido estar presente na manifestação que, com o lema «Eskubide guztiak» [Todos os direitos], denunciou a grande operação contra a juventude independentista basca, expressa a sua total sintonia com o que milhares de pessoas reclamaram nas ruas de Bilbau: o respeito por todos os direitos. Esse constitui, aliás, o ponto de partida do artigo.

A distância geográfica e o peso dos anos impediram-me de estar fisicamente na massiva manifestação de Bilbo para protestar contra a última onda de detenções de jovens nacionalistas abertzales. Mas, onde não chegam pernas, alcança coração. Estava eu ali, atrás da faixa que exigia todos os direitos. «Eskubide Guztiak». Porque o presente político e social não se pode limitar à defesa de um direito concreto; não se deve encerrar na moldura de uma petição limitada e administrativa. É preciso o fundamental.

E o fundamental é constituído por uma rede de direitos bastante categóricos, significativos e escassos em número, que constituem o cerne da liberdade. A liberdade constrói-se com esses direitos essenciais que funcionam como a tabela periódica dos elementos, em que, para que a vida mineral funcione, não se pode prescindir de nenhuma substância na ordem geral das valências. Quando se infringe ou desconhece algum desses direitos - o de expressão, o de pensamento, o de respeito pessoal, o de igualdade... -, toda a construção jurídica e humana se desmorona e deixa atrás de si a poeira asfixiante da brutalidade exercida. E não é legítimo perante esta realidade básica refugiar-se no conceito de excepção nos momentos qualificados como graves. Como também não é legítimo adjectivar esses direitos com reparos de forma a metê-los na cadeia, com abuso e escândalo. Esses direitos são plenos e determinam a absoluta saúde democrática do corpo social.

Seguindo a ordem destas reflexões, chega-se à conclusão de que os direitos de que falamos, fundamentais e genesíacos, não se podem declarar como próprios sem os contaminar de morte. São direitos que funcionam como o ar, que é de todos em comum embora cada qual o respire à sua maneira. Chegados a este ponto, não é coisa tonta condenar uma vez mais essa descrição da liberdade que consiste em definir a liberdade de cada qual como aquela que começa onde acaba a liberdade do outro. Monstruosa artimanha para fazer da liberdade um instrumento do poderoso contra o mais fraco ou minoritário!

Porque despedaçar a liberdade só ocorre àquele que possui armas para ficar com a fatia maior e determinante. A liberdade é uma dimensão do nascimento, momento em que ocorre a verdadeira igualdade. E a maturidade não se pode conceber abandonando a marca primeira que nos leva a ser. Aqueles que, a partir da sua suposta maturidade, democrática e política, desprezam a liberdade do conjunto ou a anulam por completo sabem que a sua atitude é determinada por um excesso de força que acaba sempre, sempre, no recurso impiedoso à mesma.

A multidão de cidadãos que encheram mais uma vez as ruas de Bilbo, em protesto contra o perverso furacão que atinge a juventude basca, defendia o lema «eskubide guztiak» como a única proposta para falar seriamente de liberdade e democracia. Ou haverá liberdade compatível com os encarceramentos e a tortura - desde a psicológica à física - que impedem alguns jovens de lutar pela sua pátria? E não se alegue, chegados a este ponto, essa salmodia sobre a necessidade de proceder politicamente e sem violência alguma.

Será que a violência se pratica com umas faixas ou com umas manifestações ideológicas? Pode dizer-se seriamente que um pensamento político, por muito calor que contenha a sua manifestação, equivale a força armada? E, se surge a irritação, digam-me, com a mão sobre os textos sagrados, quem verdadeiramente pratica a violência primeira e determinante no resto do turbulento processo. Falemos disso sem falsidade nem hipocrisia, sem rusticidade nos comportamentos institucionais. É doloroso, melhor ainda, triste, contemplar como a tribuna institucional se povoa de vozes elementares na expressão e nascidas de um vazio radical de ideias.

Eis uns quantos dirigentes a afinar as armas da sua Polícia e a falsificar a balança da sua pretensa justiça face àqueles que querem falar como povo necessitado de soberania para o ser. Esses dirigentes que qualificam sem análise prévia e que decidem apenas para a protecção de alguns interesses espúrios. Perante eles, não temos outra defesa que não seja a voz em campo aberto, entre mil perigos que espreitam a sua manifestação. E ante tal panorama há-de aceitar-se a balança com que tais dirigentes pretendem pesar a alma basca para ver se o seu peso excede a ordem da submissão? Levem daqui quem assim pretende governar de tal forma e com tais maneiras um país velho de liberdades e sempre jovem de consciência!

«Hemen torturatzen da». Aqui tortura-se, porque é tortura não apenas o inqualificável trato físico do aprisionado - um trato condenado por instâncias internacionais - e que não dou como provado por não ser devidamente investigado, mas a força opressora sobre todo um povo que luta por algo tão simples como ser ele mesmo. Leis convertidas em chicote de sete cordas, tribunais de excepção ao desconhecer o juiz natural, parlamentos que votaram já antes de se reunir, dirigentes que esvaziam a sua sombra a partir de uma vontade estrangeira... E tudo isso em nome de quê, se não é de um propósito despótico que no fim se consome, para desgraça de todos, numa fogueira de vaidades e domínio? Como é fácil protagonizar o comportamento contrário, a boa vontade, a amigável consideração pelo vizinho, o discurso correcto do que se quer entender. Que má digestão tem essa voracidade de terras e seres.

Se o século XXI nos há-de levar para fora do sismo que padecemos, os seus homens públicos e aqueles que os dirigem a partir da riqueza insidiosa e do poder oculto terão de seguir a política oposta de descer à rua, de compreender o meio e de entender de uma vez por todas que a sociedade não pode continuar a ser governada por uns comandos electrónicos que fingem panoramas deslumbrantes onde não existem mais que jogos festivos de luzes e retóricas falsificadoras da verdadeira realidade. Trata-se de regressar dos grandes horizontes carentes de humanidade aos territórios de vizinhança e modestos desejos de bem-estar.

Não nos digam repetidamente, com a consciência em muito mau estado, que a globalização, que torna inalcançável ao comum o controlo da sua vida, surge por si mesma como um mecanismo histórico irreprimível, como consequência das coisas mesmas. Nem globalização social, nem globalização política, nem globalização religiosa, nem globalização do saber, nem estados globalizados em si mesmos para ser colocados ao serviço dos grandes globalizadores. Ou a vida retorna ao côncavo concreto e modesto das nossas mãos ou essas mãos serão ungidas ao serviço de interesses bastardos, como já o são agora.

«Eskubide guztiak». Mas esses direitos hão-de ser os nossos direitos, os que dimanam das nossas forças possíveis e das nossas emoções mais íntimas. Os direitos não podem continuar a brotar das directrizes dos que bebem da grande cascata do poder, desde os que recebem a água com força até aos que se conformam com a colocação de uma flâmula universal numa gota ridícula e provinciana. O governo ou é autogoverno ou é opressão colonial. Penso ainda que o conjunto dos povos que forem capazes de viver para si mesmos serão bem capazes de construir uma grande estrutura universal. Não sei se é preciso ter muitas coisas, tê-las é que parece necessário. Nisso consiste a modernidade. Onde cada lar possuir a sua própria lareira para administrar o calor de que necessita há-de dar-se forçosamente o bem-estar colectivo. Pertencer a um grande império é mergulhar a liberdade no crime que sustenta os grandes interesses, sobretudo se estes interesses são governados por capatazes que manejam a mangueira por onde flui o combustível vital.

Antonio ALVAREZ-SOLÍS
jornalista
Fonte: Gara