segunda-feira, 8 de março de 2010

Destruam a infâmia!


A força das três palavras que compõem o título do artigo servem a Julen Arzuaga para propor ao leitor uma viagem através da realidade política que Euskal Herria atravessa. Três palavras que sugerem simultaneamente raiva e reivindicação, exigência de «direitos inexistentes, liberdades amputadas até se tornarem irreconhecíveis, faculdades inerentes à nossa condição de cidadãos e cidadãs reduzidos a cacos». Três palavras que recolhem o sentir maioritário em Euskal Herria e cuja origem, desvelada no final do texto, acrescenta maior sentido, se é que isso é possível, à argumentação do autor.

Palavras de agravo, de impotência. Um grito que transporta indignação, que clama pelo escândalo. Escândalo: a vileza esconde-se em cada recanto do sistema político a que nos submetem. De quem são estas três palavras, espelho de uma raiva já impossível de conter? Quem as verbaliza? Talvez as tenha pronunciado algum dos últimos detidos, dobrado com todo o tipo de tormentos. Com essas palavras talvez se quisesse referir às acusações que lhe foram arrancadas com o saco, as agressões, as ameaças e as humilhações constantes. Talvez tenham subido até à garganta do detido quando negou, com uma chapada, a veracidade do seu testemunho, a única versão acessível sobre o que se passou entre ele e o seu guarda na solidão do calabouço.

Infâmia. Refere-se porventura às falácias que foram vertidas contra os últimos cativos: a operação inovadora em Ondarroa, comandada pela flamejante Divisão Antiterrorista de Ares, termina com uma estranha amálgama de pistolões da penúltima guerra, carregamentos de droga e detidos que, aproveitando a viagem, participavam em organismos populares. Mais tarde, outros serão presos com documentação falsa, que afinal era o EHNA [BI basco]; confisca-se material informático com indicações para a elaboração de explosivos, em concreto, Cloratita, que não era outra coisa senão um CD do grupo musical bizkaitarra; divulga-se à opinião pública a descoberta de grilhetas na operação da Normandia, a partir das quais se depreendem sequestros a florescer... A corte mediática coloca as suas potentes baterias à inteira disposição. O meio não é já a mensagem, é propaganda descarada. Assim, a mescla de informações tendenciosas impede de tornar tangível, de decifrar o que realmente há, o que é fruto da todo-poderosa «eficácia» policial e o que, pelo contrário, é pura fabricação.

Destruam-na! Talvez o imperativo venha da boca de alguma mãe, farta de se sujeitar a todo o género de penúrias e ofensas para exercer um direito do preso e do familiar: comunicar. As condições de vida dos presos ultrapassaram há algum tempo os limites do desumano. Afastados, isolados, desatendidos, intimidados... sinal inequívoco de que ainda não estão submetidos. No seu afã de destruir aquilo que sentem e pensam os membros desse colectivo silenciado, foram nomeados carcereiros para formar uns fantasmagóricos «Grupos de Control y Seguimiento de Información». Uma espécie de departamento para-penitenciário que, com métodos à margem da norma e sem qualquer supervisão judicial, há-de obter dos prisioneiros «información relevante para la seguridad de la Institución y del Estado». Incluam-no na já de si extensa lista de direitos espezinhados que este colectivo põe em cima da mesa com o único método ao seu alcance: o sacrifício ainda maior das suas condições de vida à base de fechamentos e greves de fome.

Será porventura a exigência de um observador internacional que apareceu neste conflito, aconselhando a dar passos na direcção positiva para o reverter? É expressão da sua indignação? Soube pela boca de Rubalcaba que seja qual for a posição da esquerda abertzale perante uma violência, jamais poderá recuperar a sua legalidade. Esta ideia vê-se confirmada na sentença contra Arnaldo Otegi pela sua participação na homenagem a Gatza. Agora já não há posicionamentos políticos, só terrorismo. A palavra está proscrita, por acção e por omissão, pelo que se diz ou pelo que não se diz. Não é preciso justificá-lo com provas, basta o simples preconceito dos magistrados. Numa argumentação de dois gumes, a Audiência assegura que Mandela é «un auténtico héroe, que permaneció en prisión por motivos ideológicos». Nessas palavras pode ver-se reflectido o agora condenado por idênticas razões ideológicas.

Reclamará, quem sabe, que se acabe com a infâmia algum membro do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, que, depois de recentemente ter repreendido Espanha pela sua falta de respeito pelos direitos civis políticos mais básicos, recebia uma missiva: «El Gobierno se sorprende de que el Comité, como debería ser de rigor, no reitere que España cumple las obligaciones que le impone el Pacto y que avanza en la promoción y respeto de los derechos humanos». Incrível. Talvez seja porque não cumpre? Porque, em vez de avançar, retrocede? Porque já lhe pediram inúmeras vezes que reaja e, em vez disso, as autoridades respondem com um sorriso francamente estúpido?

Porventura quem emprega esta locução é uma pessoa qualquer que tenha nascido em Hegoalde [País Basco Sul] depois de 1960. Este grupo, que ascende já a dois terços da população com direito a voto, jamais pôde expressar a sua opinião sobre o estatuto jurídico que a Constituição de 1978 impõe. Os mais antigos já se expressaram então. E disseram que não. A percentagem dos inquiridos desce dois pontos no caso do Estatuto de Gernika, mas ascende a 100% no do Amejoramiento navarro, que nunca foi submetido a referendo popular. Um come e cala. Estamos sujeitos a antigos espartilhos que ninguém sabe a ciência exacta se têm o aval da população. A julgar pela forma como evitam que esta se expresse, devem concitar pouco apoio. Mas o que é realmente grave é a mentalidade subjacente: a «democracia» - pensam - exerce-se melhor sem a participação do povo. Ou mutilando atrozmente o seu corpo eleitoral. A politização é um pecado, um desvio a erradicar. De facto, hoje, exercer a política é já para alguns infringir uma medida cautelar, reincidir na prática no delito. Tem a «sua» lógica. Porque, de outra forma, estar presente como sujeito político, participar de forma coerente, comprometida, leva irremediavelmente a questionar os alicerces antidemocráticos em que este sistema se sustenta.

Não há dúvida de que o título deste artigo é um grito através do qual se reclamam direitos inexistentes, liberdades amputadas até se tornarem irreconhecíveis, faculdades inerentes à nossa condição de cidadãos e cidadãs reduzidos a cacos. Talvez seja a expressão que veicula um apego a certos princípios superiores - Democracia, Justiça, Liberdade... - que nos defendam daqueles que dizem governar-nos. Apego que eles, sem dúvida, não têm. Destruam a infâmia!, sim, podia ser o clamor desesperado de milhares de pessoas deste povo, trabalhadores, estudantes, desempregados, jovens, reformadas, imigrantes, presas...

Podia ser, mas não. São palavras de Voltaire. Com elas apelava à opinião pública em pleno século XVIII para que reagisse contra a opressão da nobreza francesa, contra a intolerância do catolicismo, contra a monarquia despótica. «Tudo para o povo, mas sem o povo» era o lema destes. Que actual. Pela frente, o livre pensador francês contra-atacava: «é vital para o género humano que os fanáticos sejam confundidos. Oh irmãos! Combatamos a infâmia até ao último suspiro!». Voltaire incitou os seus concidadãos a rebelarem-se face à opressão do sistema que depois se chamou Ancien Régime: dez anos após a sua morte eclodiu uma revolução em nome dos ideais que ele tinha defendido, que fazia bandeira de direitos e liberdades.

Não sei se três séculos mais tarde resta alguma coisa de tudo aquilo. O que parece óbvio é que, se não o reclamarmos de novo, nós, tudo ficará por fazer.

Julen ARZUAGA
Giza Eskubideen Behatokia / Observatório de Direitos Humanos
Fonte: Gara