domingo, 17 de fevereiro de 2008

Um português na "Greba"




Uma calma tensa paira no ar da velha Bilbau. São dez da noite e a capital da Biscaia, encrostada no coração do País Basco, está deserta. Pintado de fresco numa parede, surge a frase “Ez dago maitasunerako”, em euskera “não há tempo para o amor”. Efectivamente, o tempo em Euskal Herria não é de amor; o tempo é de guerra.
Ano após ano, o Estado espanhol tem estrangulado todas as propostas de resolução pacífica para o conflito, oferecendo apenas mais repressão, sustentada por uma Constituição que criminaliza o independentismo e que o povo basco chumbou democraticamente em 1978. Uma vez, confrontado com o escândalo dos GAL, o então primeiro-ministro de Espanha, Felipe Gonzalez, disse que “a democracia faz-se nos salões, mas também nos canos do esgoto”. É esta última, a democracia espanhola. É a democracia da tortura sistemática e institucionalizada, é a democracia da perseguição política e da intoxicação informativa. É também nesta democracia que agora se vem ilegalizar o Partido Comunista das Terras Bascas e a Acção Nacionalista Basca. Esta última, organização de 78 anos, em toda a sua longa história só havia sido ilegalizada uma vez, por Franco.
Só em 2007 registaram-se 490 detenções políticas das quais 209 resultaram em pena de prisão, 123 proibições de actos públicos, 97 cargas policiais, 42 denúncias de tortura, 2155 controlos de estrada por motivos políticos, 148 feridos em manifestações e 1 morto pela dispersão. Ao melhor estilo fascista, aqui perseguem-se as ideias, criminaliza-se quem pensa de forma diferente, perseguem-se policial e judicialmente associações, grupos culturais, sindicatos e organizações juvenis e encarceram-se direcções inteiras de partidos políticos, tudo sob a justificação da luta contra o terrorismo. Como disse um dia, o juiz-inquisidor Baltazar Garzón, “não há entorno da ETA, tudo é ETA”.
O problema do Estado espanhol não é com a ETA, nem tão pouco com a esquerda abertzale. O problema do Estado espanhol é com o País Basco e o que se está a ilegalizar e perseguir não é só um partido político, é uma identidade, uma nacionalidade, um povo inteiro, no sentido mais lato da palavra.

Meia-noite em ponto. Começa a Greve Geral, decretada pela esquerda independentista, de protesto contra a onda repressiva. As ruas da cidade madrugadora fazem lembrar um cenário de guerrilha urbana: são raras as paredes em que não se lê “GREBA”, as lojas estão hermeticamente fechadas com pesadas cortinas de ferro, polícia armada vigia os principais cruzamentos, controlos de estrada protegem os acessos à cidade e helicópteros patrulham os céus. Durante as primeiras horas da madrugada, são sabotados o metro e o comboio. As principais estradas que levam a Bilbau, são cortadas por grupos de jovens, que se sentam em plena auto-estrada, com os braços unidos por cilindros de cimento e aço. Pouco depois, são incendiados dois autocarros. Às 8 da manhã, piquetes de 50 pessoas, alguns com 100, percorrem as ruas gritando “aqui tortura-se como na ditadura” ou “Euskal Herria não é uma democracia”. Junto-me a um destes piquetes que percorrem o centro histórico e aproveito o passeio turístico. As poucas lojas que estão abertas, fecham-se à passagem dos piquetes de greve. Repetidamente, pequenos explosivos, provocam estrondos que ecoam pelas fachadas medievais dos altos edifícios amuralhados. Patrulhas da Ertzaintza, de cara tapada e armados até aos dentes, também percorrem as mesmas ruas labirínticas. Quando os dois grupos se encontram, os piquetes esgueiram-se pelas finas ruelas e continuam o seu trabalho. É o jogo do gato e do rato. Quando, excepcionalmente, algum estabelecimento permanece aberto, bastam algumas palavras mais ríspidas dos grevistas como “a passividade é cumplicidade” para que as portas se fechem.
À minha frente, vai um grupo de uma dezena de pessoas, que nas portas das lojas encerradas, colam autocolantes que dizem “fechado – paremos o estado de excepção”. Subitamente, um carro da polícia municipal cruza-se com este grupo, que dispersa a correr. O carro de patrulha tenta fazer uma manobra repentina de travagem, mas o carro vai embater contra um sinal de trânsito. Os pequenos petardos continuam a explodir, como que para comemorar o feito e alguns contentores são atravessados no meio da rua, para dificultar o caminho à polícia.
Ao meio-dia, começa uma manifestação, que junta mais de 6.000 pessoas, que percorrem as principais avenidas de Bilbau, escoltadas por um aparato policial impressionante. Até a esta hora, em Bilbau já tinham sido detidas 13 pessoas.
Quando o desfile encabeçado pelo sindicato independentista LAB, passa em frente do Banco de Espanha, ouvem-se apupos e assobios. À porta, um guardia civil de metralhadora em punho, responde com saudações fascistas aos manifestantes que lhe gritam “pim pam pum”. A manifestação termina sem problemas com a polícia, com um discurso de vários dirigentes sindicais da LAB. Por fim, canta-se A Internacional em euskera e o Eusko Gudariak, o hino do guerreiro basco. Ninguém põe um CD com estas músicas a tocar, todo o som que se ouve, provem das gargantas dos milhares de pessoas, que cantam num tom baixinho e triste os dois hinos. Na praça ampla e iluminada, há um mar de braços erguidos e punhos cerrados que não reagem ao jeito taciturno e consternado com que se entoam as duas canções. Subitamente, alguém faz o irrintzi, o trágico e milenar grito de guerra basco que corta violentamente o silêncio pesado, inventado pela multidão para escutar os seus hinos. O ritual termina com um “Viva Euskal Herria Socialista! Viva Euskal Herria Livre!” A manifestação dispersa e os piquetes de greve continuam, tensos e insistentes.
A comunicação social da classe dominante fala de “uma greve insignificante” enquanto a esquerda abertzale fala de várias dezenas de milhar de manifestantes. O Ministro do Interior declara que é ofensivo para os trabalhadores utilizar o seu mais importante instrumento de luta para causas políticas. Os mesmos que promovem a exploração dos trabalhadores e que são cúmplices do terrorismo laboral que, todos os anos, assassina milhares de trabalhadores, vítimas de acidentes laborais evitáveis, surge agora incrivelmente preocupado com a forma como os trabalhadores utilizam as suas armas, dizendo que “não vale” tornar as greves políticas.
Pela tarde, a manifestação repete com idêntica força o mesmo trajecto. Lado a lado, marcham senhoras dos seus 60 anos, punks, mães empurrando carrinhos de bebé, skinheads antifascistas, membros de organizações feministas, okupas, internacionalistas, ecologistas e até mesmo alguns anarquistas. É como se os bascos, no seio da esquerda abertzale, tivessem descoberto a fórmula da união.
O dia de luta termina pacificamente, fico algumas horas a discutir política com camaradas da Askapena, trocando impressões, atirando sempre novas dúvidas e partilhando as mesmas aspirações políticas. Será possível à esquerda abertzale lograr a independência? Ou será que Euskal Herria terá o mesmo fim que o império inca? Aniquilado pela aleivosia de Espanha? Creio que não. Aqui, as pessoas são bascas, não são espanholas. E estão dispostas a lutar até às últimas consequências pelo direito a decidir livremente sobre o seu próprio futuro. Não creio que tamanho movimento, que tamanha energia, vitalidade e maturidade política possam ser detidos pela violência. As novas ilegalizações nada podem contra o independentismo, a história da esquerda abertzale é uma crónica de repressão e auto-organização. Para acabar com a esquerda independentista, teriam que acabar com os bascos. Como escreve Rui Pereira, neste tipo de conflitos, não ganha quem tem mais armas ou quem é mais violento, ganha quem aguenta mais, e historicamente, os bascos têm a tradição de aguentar.


Nós, portugueses, devemos a nossa independência, em grande parte, à actual opressão de outros povos do Estado espanhol. Em 1640, o Estado espanhol, por falta de capacidade militar para a conjuntura, teve que escolher entre sufocar a Restauração portuguesa ou as revolta dos Segadores, na Catalunha. Sendo esta última nação, historicamente muito mais rica, foi a escolhida, tendo Madrid que se conformar com a independência Portuguesa. Talvez também por isso, tenhamos agora o dever de nos solidarizarmos com os que continuam a ser oprimidos pelo Estado espanhol. Até porque não é só a solidariedade internacionalista que cruza fronteiras, também a repressão dos trabalhadores vai beber inspiração aos postos avançados da tirania um pouco por todo o mundo capitalista. Num momento em que o governo português avança com novas medidas antidemocráticas e fascizantes como a actual lei dos partidos, torna-se cada vez mais premente, tanto para portugueses como para bascos, estendermos a nossa solidariedade a este povo dos Pirenéus, como um dia o fizemos com o povo timorense ou os povos africanos colonizados.

À entrada de uma Herriko Taberna (locais tradicionais de convívio e reunião ligados à esquerda abertzale), lê-se num grande mosaico: “É preciso que todos dêem um pouco para que alguns não tenham que dar tudo”.
Na minha curta estadia em Euskal Herria, tenho sentido o inexplicável calor do apreço pela solidariedade. Solidariedade que torna amigos companheiros de países diferentes que não se conhecem; que nos relembra do significado da nossa humanidade, esticando os nossos esforços para além dos limites do físico e do possível e predispondo-nos a lutar e se necessário a sofrer pelo outro




A.

Estudante de internacionalismo em Euskal Herria
Activista da ASEH