domingo, 2 de novembro de 2008

Varas de medir

A história está repleta de exemplos que sustentam a afirmação do autor do artigo: nunca houve uma única vara de medir, uma única rasoura. Os nobres não pagavam tributos e não podiam ser alvo de tortura por parte da Inquisição. “Só se metia a tormento a gente marginalizada”, diz Antoñana. A discriminação da vara e da rasoura perpetuou-se até aos nossos dias, e hoje a presunção de inocência protege os herdeiros daqueles nobres e dilui-se para os do “ambiente”.

Quando o general mandava em nós, escrevia-se em código, lia-se nas entrelinhas, e era preciso ser especialista a decifrar, éramos bons entendedores das mensagens crípticas, o confuso expresso com meias palavras, em letra pequena, e o seu lugar era nalgum recanto perdido do jornal. Algo de semelhante nos veremos obrigados a fazer, não tarda muito, com os nossos textos, pois, do modo que as coisas andam, chamar pão ao pão e vinho ao vinho terá consequências. Já o disse Quevedo: “A verdade só prejudica quem a diz”, ainda que Jesus de Nazaré se tenha adiantado com: “A verdade vos libertará”. E Pilatos perguntou a Jesus “o que é a verdade”, uma pergunta sem resposta, pois parece que, como a justiça, é um conceito abstracto, de aplicação arbitrária. O casuísmo jesuítico, um exemplo. E tal foi a ambiguidade, o sim mas não, que a decepção, a desconfiança, a demolição do sentido crítico, o desapego socorreram a gente comum.

Em tempos, a vara de medir, nas lojas de tecido, era tramposa, a rasoura também embusteira, e tanto a vara como a rasoura se incrustaram no idioma como expressão cabal do engano. Sempre assim foi, sabemo-lo, pois para os nobres não havia obrigação de pagar tributos, isentos de leva ao serviço do rei, então não existia a pátria, e, se iam alistados, era sempre com o posto de oficiais, emprego militar negado à gente comum. Não podiam ser torturados (agora, os que lhes sucederam no gozo do poder, também não), e a Inquisição ou Tribunal do Santo Oficio só metia a tormento a gente marginalizada, não se lhes exigia testemunhos, pois só a sua palavra valia, tinham foro, ou privilégio, como os militares ou os eclesiásticos.

O Iluminismo e depois a Revolução Francesa quiseram corrigir o abuso e proclamou-se a Declaração dos Direitos do Homem, adoptada nos nossos dias pela ONU, que, como bem se sabe, só tem validade no papel, com nula aplicação em muitos países que se prezam de civilizados e democratas no vasto mundo. As diversas varas de medir, a rasoura não passam com o mesmo rigor, e a justiça, um desejo frustrado, acolhido numa das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça”. Quer dizer, já nos tempos de Cristo não havia justiça, e hoje também não. As prisões cheias de gente marginalizada, os marginais, os obrigados a viver mal; por outro lado, a outra gente, a da luva branca, os que prevaricaram, desviaram verbas, fizeram desfalques, encontra quem os defenda e descubra recantos perdidos da lei que lhes concedem a indulgência da prescrição, do fora de prazo, e não passam pelo filtro da prisão.

A presunção de inocência, uma violação da rasoura, aplicação de dois pesos e duas medidas. A justiça definida pela Real Academia Espanhola como “virtude cardeal que tende a dar a cada qual o seu”, violada. Apanham o banqueiro falsificador, o narcotraficante com as mãos na massa, o violador confesso, o ladrão de objectos de igreja (recente é o caso dos cravos da igreja de Sesma, ou os objectos de culto numa casa de Sartaguda, ou a espoliação de uns residentes em Fustiñana e Castejón) e merecem o respeito da “presunção” e não aparecem na imprensa os seus nomes completos, unicamente as iniciais, M.P., homem, de 45 anos de idade; S. L., homem, de 28 anos, de etnia cigana. Não lhes é aplicada a prisão preventiva, nem o regime de incomunicação das 72 horas, ou o prolongamento até às 120, que ficam reservadas aos do “ambiente”.

A lei é a lei, e ainda por cima sagrada. Respeito não concedido merecem os apanhados nas operações recentes em Iruñea, os da «cale barroca», como dizem os de Madrid, exibidos para escárnio nos jornais, com nomes e apelidos, e fotos incluídas, para que constem claramente e assim se apregoe a sua identificação, como os wanted do Oeste e já com acusação sem sentença substanciada antes de entrar no carro da polícia. Três dias retidos na esquadra e são já “condenados” a prisão incondicional à espera do julgamento que chegará tarde, e talvez com exculpação e declaração de inocência. Queimar um contentor em Iruñea pune-se com prisão, queimá-lo num qualquer lugar de Valência, que refiro como exemplo, em noites de copos na via pública, considera-se vandalismo. Acrescenta-se, muda-se, retoca-se as leis para cercear mais a liberdade em benefício da segurança. Instalam “olhos mecânicos” nas esquinas, e sofisticadas “orelhas”, também mecânicas, para seguir os nossos passos, captar a intimidade das nossas vozes, e tornar-nos culpados de algo, não sabemos de quê, só da nossa dissidência.

Os responsáveis pelo cataclismo universal (o capitalismo puro e duro seu promotor) de que padecemos actualmente são gente da Banca ou das finanças, construtores que começaram com o livro de “Contas ajustadas”, com iate, avião privado, mansões de luxo, “mulher escondida”, que ontem mesmo, há poucos meses atrás, solenemente alardeavam ganhos milionários, pertenciam a 14 conselhos de administração, em que cobravam milhares de euros, se reformavam com três mil milhões de euros, “privatizavam ganâncias”, e agora pretendem “partilhar perdas”. Onde estão eles escondidos e as poupanças que lhes emprestaram milhões de pessoas e de que dispuseram como suas, para o esbanjamento e o luxo, onde. Não os procurem, pois não os vão encontrar, nas Bahamas, no principado do Mónaco, ou, quiçá, em qualquer outro sítio que não seja a câmara blindada na cave da sua residência.

E as suas vozes agora assustadas, como o ulular do lobo, chegam aos governos que lhes prestam atenção e lhes emprestam fortunas, que é oxigénio para que, uma vez recuperados das suas feridas, voltem a espoliar-nos, com as mesmas manhas e manejos que tiveram e retiveram. Voltarão com os seus descaramentos, os seus iates, as suas acções blindadas, as suas “mulheres escondidas”, os seus ganhos milionários, num desafio provocador ao prognóstico de Karl Marx: “O capitalismo acabará por se autodestruir”. Não, o capitalismo cujos alicerces são a cobiça e a exploração de almas, territórios, países, bosques, minas de que se apropriam, ressuscitará, não haja dúvida. Virá com outra capa de prestidigitador, mas virá, e os governos hão-de mimá-lo, e a saúde, o ensino público – não o privado, claro –, a habitação social, o trabalho digno hão-de continuar a ser descurados. Não hão-de perder tempo a vigiar quem agora diz não saber onde está o dinheiro, como se um mago manhoso o tivesse escamoteado sob as suas roupagens extravagantes; hão-de gozar os mesmos privilégios, hão-de promulgar leis que os beneficiem e não lhes causem dano, e não hão-de entrar na jaula da prisão. Onde está o dinheiro, onde, só poderá responder o “maestro armero” [está aqui por ‘aquele que não pode saber, que não tem capacidade para tal’].

Certas regalias penitenciárias de que beneficiam os presos comuns não abrangem os presos políticos; é que são todos comuns. Não é igual o trato para todos os detidos. Aí está a incomunicação denunciada pelo Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos e a Luta Antiterrorista, Dr. Martin Scheinin, que pediu a “erradicação do regime de incomunicação previsto na legislação espanhola para os detidos por terrorismo”. Este regime é um “assunto inquietante”, disse. Já em 2004, o Relator então das Nações Unidas, Teo Van Boven, disse: “e não pode considerar-se uma invenção as denúncias de maus tratos realizados a pessoas acusadas de terrorismo em Espanha”.

Duas varas de medir, duas rasouras, duas sínteses do mundo dos humanos, distintas, a justiça e a sua expressão concreta elucubração, um desejo por cumprir.

Pablo Antoñana
escritor

Fonte: Gara