sábado, 9 de maio de 2009

A praça é minha


As ruas bascas convertem-se de novo em campo de batalha. Desta vez, apenas de modo simbólico. Foi Fraga que cunhou a frase prepotente “a rua é minha”. E está visto que não saímos daquela disputa. Atrás dele vêm os seus herdeiros e insistem em reclamar a propriedade que, a julgar pela agitação, representa muitos interesses em jogo.

Segundo podemos ver, a ideologia, o imaginário, na falta de outros suportes, discute-se nas placas que dão nome, e reconhecimento e significado comemorativo, ao arruamento que dá ordem e trajecto aos nossos passos.

Um tribunal espanhol, por mais que se intitule de Bilbau, decretou que sejam retirados os nomes de Txiki e Otaegi da praça de Etxebarri. A juíza argumenta na sua condenação que Txiki e Otaegi, fuzilados pela ditadura franquista, eram “dois terroristas culpados de pertencer a um grupo terrorista” (sic; a redundância é recurso de sentença, de autoridade moral, diríamos, de contundência). De acordo com isto, a homenagem que lhes outorga essa praça atenta contra o “direito fundamental garantido na Constituição, como é o da honra e dignidade das vítimas”. Como dizia Walter Benjamin, “nem sequer os mortos estarão a salvo do inimigo se este vencer. E jamais deixou de vencer”.

Foi a Delegação do Governo que apresentou recurso contra o nome da praça em litígio nos tribunais. Mais uma demonstração da fidelidade de polícias e juízes à legalidade de Franco, e à defesa daqueles crimes, para lá da passagem dos anos, e dos regimes, e das mudanças (se as houve). Que duas pessoas fuziladas por um Estado de terror, sem a menor defesa jurídica, sem garantias nem direitos, não sejam consideradas vítimas por uma juíza, ou pela Constituição que invoca, diz muito do estofo moral deste sistema judicial a que nos condenaram.

É coisa melindrosa falarem-nos de vítimas e verdugos à conta de um episódio sinistro, a consumação de assassinatos em frente a um paredão de fuzilamento, ao amanhecer, milhares de abutres calados vão abrindo as suas asas, maldito baile de mortos, toda a Europa um clamor contra a Espanha e até o Vaticano retirou o seu apoio incondicional a Franco, às mãos de uma pandilha de sicários que nunca pagaram pelos seus delitos, que os juízes jamais processaram, nem investigaram, como jamais reviram os expedientes de desaparecidos e justiçados nas valetas, ou os Tribunais de Ordem Pública...

Outro dado inquietante destas pendências judiciais é comprovar como se constrói uma sociedade – e imaginário colectivo – sobre suportes policiais: é o caso dos nomes das nossas ruas; mas também se ilegalizam partidos a partir de relatórios da polícia e da guarda civil (confissão da procuradoria mor do reino); encerram-se jornais (recordemos o Egunkaria) sobre a ressaca do comissário de turno; a nossa imprensa, meios de comunicação e políticos de todos os rumos fundamentam as suas declarações em fugas de informação de nível policial, sem a menor cautela nem distância perante as versões de uma polícia que manifesta estes instintos.

Enfim, falemos sem rodeios, de maneira que se entenda. Sem bagatelas nem chatices jurídicas. Quando a juíza em questão fala de dignidade e reconhecimento, de direitos fundamentais, de vítimas e verdugos, está somente a adornar e a justificar o que de facto é a sua função: ditar quem é culpado e quem é inocente. Quem condeno e quem absolvo. E o que diz essa sentença é que Txiki e Otaegi eram culpados, e os que os fuzilaram, inocentes. Que o tribunal os condenou, e ponto final. E que os matou porque assim eram os tempos, e não vamos agora voltar ao assunto. Em suma, que estão bem mortos.

Dizia Bertold Brecht que, no final, nem nomes nem ruído, “dessas cidades ficará o que as atravessou: o vento”. É possível. Nessa altura estaremos todos mortos. Entretanto, vendo estas infâmias, fica-nos o calafrio.

Angel REKALDE