quinta-feira, 7 de maio de 2009

Uma operação prisioneira da propaganda oficial


A operação iniciada em Montoriol há quinze dias foi um bom exemplo do tipo de actuação patenteado conjuntamente por Madrid e Paris: uma colaboração policial bastante estreita, que passa por cima de barreiras legais, condimentada com um show mediático pela parte espanhola. Quando a propaganda desaparece, torna-se evidente uma torrente de dados falsos e múltiplas dúvidas sobre o alcance real de várias detenções.

A recente operação conjunta entre as polícias francesa e espanhola, que se saldou com as detenções de Montoriol e Gasteiz, foi acompanhada por destacamento mediático tão vasto que obriga a distinguir a verdade do que não o é, a diferenciar a informação da simples propaganda. Uma coisa é certa. A operação, com detenções totalmente sincronizadas, mostra um bom exemplo do grau de estruturação da colaboração franco-espanhola, embora a opacidade que rodeia o trabalho jurídico-policial de ambos os estados torne muito difícil saber como funciona.

No meio da enxurrada de “notícias” que se abateu sobre a opinião pública durante os quatro dias de incomunicação, chegou-se a difundir, por exemplo, que os detidos na Catalunya Nord tinham estado em contacto com os seus advogados “de 21 em 21 horas” desde o início do período de incomunicação. A realidade é bastante distinta: estes não os podem visitar senão passadas 72 horas da detenção, segundo confirmaram ao Gara.

Em toda essa nebulosa perde-se, por exemplo, o conhecimento sobre até que ponto participou ou não a Polícia espanhola na detenção e nos interrogatórios a Jurdan Martitegi, Gorka Azpitarte e Alex Uriarte. O quadro legal acordado entre os dois estados estabelece que a Polícia espanhola pode perseguir suspeitos de cometer ou ter cometido algum delito num raio de 10 km fora das suas fronteiras. A lei obriga-os ainda a informar imediatamente as autoridades francesas competentes da perseguição e dá-lhes poder para os reter. Mas a norma também estabelece que nunca os podem deter e, menos ainda, interrogá-los. Isso é da competência exclusiva da Polícia francesa.

As equipas policiais mistas
No entanto, há uma excepção. São as equipas de investigação conjunta que existem desde 2004. São constituídas a pedido do magistrado ou do juiz de instrução em dois casos concretos: ou se trata de uma investigação já aberta em território francês e que, pela sua “complexidade”, requer a ajuda espanhola; ou de um mesmo caso que se esteja a investigar nos dois territórios porque a ambos diga respeito. Nas duas situações, necessita-se do consentimento do Ministério da Justiça francês – que é dado sempre e com grande celeridade no caso de assuntos relacionados com a ETA. Passado este trâmite, já só falta formar a equipa mista.

Agora, ainda que a Polícia espanhola trabalhe lado a lado com a francesa, os seus agentes não estão autorizados a realizar determinadas actuações reservadas unicamente aos franceses. Por exemplo, não podem proceder à realização de inspecções ou de detenções de forma directa. No entanto, têm a possibilidade, no âmbito destas equipas conjuntas, de participar nos interrogatórios. A pessoa detida pode sempre, em qualquer caso, guardar silêncio e não responder às perguntas de uma ou da outra polícia.


O hermetismo à volta destas equipas é absoluto. Não há certeza absoluta, por exemplo, de que polícias espanhóis tenham participado nos interrogatórios, para além da afirmação feita por um porta-voz da Polícia francesa. E foi notório o interesse da parte espanhola em sublinhar que a operação tinha sido dirigida a partir de Madrid, pelo juiz Baltasar Garzón. Mas, devido a essa opacidade, também não se puderam descartar de todo outras opções, como o ter ocorrido uma perseguição para lá das fronteiras espanholas, sem amparo legal, como ficou explicado. A investigação deixa muito claro que Alex Uriarte tinha sido submetido a intensos seguimentos antes de chegar a Montoriol, segundo indicam ao Gara fontes judiciais conhecedoras do caso.

Seja como for, nessa operação concreta, torna-se evidente que o trabalho conjunto nas equipas de investigação mistas é algo normalizado. Portanto, as novidades que possam acontecer no futuro (ou antes a “legalização” de procedimentos que já se estejam a ser postos em prática) hão-de afectar apenas questões técnicas ou de funcionamento. Na recente visita de Nicolás Sarkozy a Madrid, voltou a ficar óbvio que a sintonia política é total. Une-os a recusa a reconhecer Euskal Herria.

Os matizes existem em questões de princípio, e também no que respeita ao tratamento mediático. O Estado francês declara estar disposto a “cooperações ou trabalhos conjuntos” contra o que entende como “um inimigo comum”, mas tanto a Justiça como a Polícia mantêm o critério de que no seu território mandam eles e que são eles que escolhem os modos de actuação. Aí reside, por exemplo, a enorme diferença na utilização dos meios. Enquanto da parte francesa apenas transpiram dados, as agências, os diários ou as rádios espanholas não deixam de cuspir informações, a maior parte das vezes erróneas. Assim aconteceu com a identificação inicial de um dos detidos em Montoriol, ou, sete dias mais tarde, quando se deu como certo que em Bourgogne tinha ocorrido um tiroteio, que um dos dois supostos activistas da ETA estava ferido e que se encontravam cercados num bosque. Passaram os dias, e é claro que nada disso aconteceu, mas não há rectificações nem explicações. Mais habitual ainda, mas igualmente de nota, é que nestas operações se colem etiquetas “número 1” que depois são desmentidas ou matizadas, já com muito menor eco, pelos porta-vozes oficiais.

Muitos destes órgãos de comunicação continuaram a referir-se aos detidos como “etarras”, mesmo que sejam postos em liberdade, como ocorreu com a jovem Olaritz Arakama, sobre quem também deturparam o grau de parentesco com o preso político basco Iñaki Arakama.

Sem dados sobre o «comando»
Mas mais importante é constatar que hoje em dia a investigação continua sem aduzir qualquer prova contra os jovens detidos e encarcerados em Euskal Herria. O ministro do Interior, Alfredo Pérez Rubalcaba, alimentou a tese de que formavam um comando disposto a atentar, mais concretamente em Gasteiz. Contudo, os seus advogados ressaltam que os presos negaram qualquer relação com a ETA. E nas suas casas também não se encontrou nada de relevante, para além de documentos políticos ou mapas. Consta, isso sim, que tinham alguma relação pessoal com Uriarte, por terem partilhado um andar ou participado em passeios de montanha, e em alguns casos também antecedentes policiais, ou que militam na esquerda abertzale. Mais nada, como admitiram implicitamente os mesmos meios de comunicação que louvaram a operação. Ninguém precisou quem faria parte, ao certo, desse fantasmagórico “comando”.


Outro dos detidos – Jonathan Guerra – foi liberto, mas aconteceu dois dias mais tarde, pelo que o dado apenas “turvou” o tratamento propagandístico da operação. A mensagem principal era a da eficácia policial, mais ainda em vésperas da cimeira de Madrid, à qual se queria dar tanto relevo. E também depois de uma semana em que a Polícia espanhola tinha estado no olho do furacão por causa das afirmações do procurador geral do Estado, Cándido Conde-Pumpido.

Fonte: Gara