segunda-feira, 13 de julho de 2009

Da injúria como uma das belas artes


«El sueño de la razón produce monstruos» (Goya)

A Sombra de Alfonso Sastre está preocupada porque o acha um pouco estranho. Por fim decide dizer-lhe alguma coisa:)

Sombra - Oiça, chefe. Você recebeu nos últimos tempos uma enorme onda de solidariedade.

Sastre - Isso é bem verdade; e também que agradeci toda essa solidariedade na alma, embora não tenha sido capaz de o fazer pessoalmente a cada uma das pessoas que me declararam a sua simpatia sem preço. Dou-lhes os meus milhares de agradecimentos desde aqui.

Sombra – Mas, também, permita-me que lhe diga que outras pessoas se mostraram tão contrárias a si que lhe chamaram de tudo, ou seja, que o mandaram às urtigas, como se costuma dizer.

Sastre - (procurando mostrar indiferença) Bom, bom. Não ofende quem quer, mas quem pode.

Sombra - Essas pessoas de que lhe falo puderam e ainda o fizeram a partir de grandes meios jornalísticos e agências.

Sastre – Referia-me à possibilidade de o fazer moralmente e também intelectualmente.

Sombra - Oiça, e o que acha de dizerem a uma pessoa que é um carrapato – que é um ácaro chupador de sangue –, por exemplo?

Sastre - Se me quiseram chamar chupador de sangue (não sei por que razão), teria preferido vampiro, porque sou um admirador do Conde Drácula, e os morcegos amantes do sangue, se é que existem, parecem-me muito bem, mas nestas coisas não se pode escolher. No geral, estou contente porque os meus injuriantes respeitaram o meu coxeio, porque podiam ter-me chamado, por exemplo, “coxo sinistro”, e só me chamaram sinistro. É melhor que nada. Nisso avançámos bastante em relação ao franquismo do pós-guerra, quando os mutilados da guerra, se fossem republicanos, eram considerados “cabrões coxos”, e se fossem franquistas levavam o venerável epíteto de “cavalheiros mutilados” e nos autocarros havia assentos reservados para eles. Era uma diferença, no mínimo, bastante desagradável.

Sombra - Injuriar alguém é sempre mau? É sempre um sinal de incultura?

Sastre – Eu não diria isso. O que acho é que é muito difícil “injuriar bem”, pelo menos em espanhol, onde a questão não está resolvida e deparamos com um panorama em que os insultos mais fortes e eficazes são ainda “puta” para as mulheres e “cabrão” para os homens, evidenciando assim um grande machismo e uma incultura digna de nota, pois é claro que as putas são pessoas muito respeitáveis e que os cabrões não são mais que pessoas desgraçadas a quem as suas esposas puseram os cornos.

Sombra - Você sabe se alguém conseguiu “insultar bem” em espanhol, ou seja: injuriar com bons modos?

Sastre - (afirmativo) Jorge Luis Borges dá alguns exemplos num pequeno trabalho que incluiu na sua História da Eternidade (muito breve, já agora) com o título «Arte de Injuriar».

Sombra – Lembra-se de algum?

Sastre - (afirmativo) Por exemplo, ao grande poeta Leopoldo Lugones injuriaram-no muito bem – embora fossem injustos, mas essa é outra questão – dizendo que ele “cometia os seus sonetos”.
Sombra - (ri-se) Tão diferente destas injúrias que lhe dirigiram a si agora!

Sastre – Destacou-se aquela de me chamarem “carrapato”, mas também me chamaram “imundo”, “fanfarrão”, “sinistro”, “pobre diabo” e “excrescência da história”. Até me disseram que eu não sou um ser humano; que só tenho de humano o ter sido engendrado por um homem e uma mulher, e nada mais. Certamente, se eu tivesse sido cigano, esta última coisa era a que me tinha caído mais mal.

Sombra - Ah, ah. E porquê?

Sastre - Porque a eles não lhes cai nada bem o mero facto de que “se minta aos pais”.

Sombra - E o que é que um cigano teria respondido a isso?

Sastre - Certamente o cigano “teria cagado (tal como soa, e desculpa-me a sujidade da expressão) nos mortos” de quem lhe dissesse tal coisa.

Sombra - (ri-se) Não parece lá muito fino, mas está bastante bem. E a si, disseram-lhe mais alguma injúria, assim, curiosa, de que você se lembre?

Sastre - É impressionante a de que eu pertenço mais ao mundo do crime que ao da literatura.

Sombra - E quem disse isso? Algum idiota?

Sastre - Não insultes, não insultes, pelo menos com essa palavra tão ofensiva.

Sombra - Então qual? Imbecil?

Sastre - Esse é um insulto sem sentido porque um imbecil não é mais que uma pessoa que não tem bastão (báculo). Por via das dúvidas, podes chamar-lhe “cenutrio”.

Sombra – E o que é um cenutrio?

Sastre - É outro insulto, que encontrei num livro bastante curioso, intitulado El Gran Libro de los Insultos. Tesoro crítico, etimológico y histórico de los insultos españoles, publicado em La Esfera de los Libros, Madrid, 2008. (Dá-lhe o livro, que estava entre os que há na sua mesa) Vê lá que definição apresenta de “cenutrio”, de que não me lembro agora; gostei porque me soava bem.

Sombra - (procura-o e no fim lê:) “Alude a quem é torpe ou sumamente bruto”.

Sastre - Ah, agora que o sei, não assenta tão bem ao meu injuriante. Terei que procurar outro insulto melhor para esse sujeito. (Exclama de imediato:) Oh! Acabo de o encontrar: “esse sujeito”.

Sombra - Mas isso não é um insulto. Ser sujeito de uma oração é cumprir uma função importante. Ou não? (Sastre abriu um dicionário comum e consulta a palavra. Encontra-a e lê-a:)

Sastre - Ah, um sujeito é também “uma pessoa inominada”, e não encontro nenhuma acepção pior. Mas, bem, foi porque o disse com um tom especial. Lembra-te daquele que dizia que o que o incomodava não era que lhe chamassem filho da puta, mas sim o tom com que alguns o diziam. E é verdade que não é um dicionário que resolve a significação das palavras e das frases, assim sem mais, sendo antes reveladas nos contextos e, na fala, pelos tons com que as palavras e as frases são ditas. Quanto ao caso que agora recordamos, não se trata de “uma pessoa inominada” porque é José Bono o nome dessa personagem menor. Seguramente, esta designação de “personagem menor” assenta muito bem a esta personagem menor, e, dito como agora o disse, é uma injúria corrente, ainda que, bem vista, a de cenutrio não lhe caia mal de todo.

Sombra - E, voltando a si, “pobre diabo”, que lhe parece? E “excrescência da história”?

Sastre – Claro que não é agradável e, mais ainda, chateia um pouco, e, mais ainda, dito pela pessoa que o disse, que ela, já de si, é bastante desagradável.

Sombra - (com curiosidade) E quem é essa pessoa, se é que se pode saber?

Sastre - Uma forma vulgar de te responder injuriando-a, mesmo que debilmente, seria dizer que não me lembro do seu nome ou que é “uma tal María Antonia”. Borges refere-se a um crítico italiano que não gostava de Goethe e que lhe chamava no seu ensaio “il signore Wolfgang”. Esta tal chama-se certamente Iglesias e é uma flor das tertúlias bastante ignorante mas remediada na defesa do que é seu, e vê-se que vive como pode.

Ouvi uma vez que num programa da COPE, rico em insultos e desprezos às pessoas, chamaram a esta senhora “a mulher barbuda”, e isso porque, creio, o seu rosto está adornado por uma pequena papada. Não lhe achei a mais pequena graça e eu recuso-me a aceitar que o rosto pouco favorecido de uma pessoa (mesmo que seja vesga) seja utilizado para a injuriar ou que um gago seja objecto de gozo pela sua gaguez. Isso é mau, ética e esteticamente. Naquela emissora que mencionei há um grande insultador... (A sombra ri-se) Do que é que te ris agora?

Sombra - É que essa do “insultador” lembrou-me uma piada que você costuma contar.

Sastre - Ah, sim; contava-a o meu amigo José María de Quinto, e era sobre dois senhores que trocavam cartões entre si, e um deles, ao ler o do outro, estranhava a profissão que lá aparecia: “Insultador”?, perguntava-lhe, surpreendido, e o outro respondia-lhe logo: “Sim, qual é o problema, filho da puta?”. (Riem-se ambos) Enfim, o que insulta muito na COPE é Federico Jiménez Losantos, que chama ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías, “macaco vermelho”.

Sombra - Isso é pior que um mau insulto. Não é, chefe?

Sastre - Digamos que o pior insulto atinge os seus níveis mais altos e repugnantes em casos como este. Regressando, para acabar, a lugares mais belos, recordo exemplos de grande espiritualidade com que, ao longo da história, se respondeu algumas vezes às piores injúrias, inclusive às agressões físicas. O que eu vou citar foi tomado por Borges das obras de Thomas De Quincey, e é o de um cavalheiro que, quando discutia com outro, levou com o conteúdo de um copo de vinho na cara. Então, calmamente, limpou o rosto com o seu lenço e respondeu assim: “Isto é uma digressão. Agora diga-me o seu argumento”.

P.S. - Neste artigo não tratei das calúnias que possuem algumas das injúrias de que fui alvo. Essa é outra cantiga.

Fonte: Gara