sábado, 9 de agosto de 2008

Manifesto pela língua


Tasio-Gara [Como alguns entendem a língua comum]

Desde há uns anos para cá que tenho razões crescentes para me preocupar, no meu país e noutros que visito, com a situação da língua castelhana, que, como bem indica a designação, provém de Castela. Eu não sou castelhano, e olhem que gostaria pelo menos de o experimentar, mas nasci num outro sítio e já se sabe que a natureza não se escolhe, apesar do dito de Gabriel Celaya sobre o nascer e o pastar. Conheço a língua, como se pode ver por estas linhas [texto original em castelhano], e expresso-me habitualmente nela, embora deva acrescentar que não é a única. Com os meus filhos, a mãe deles e a maior parte dos amigos, expresso-me em basco (esse idioma que a Academia da Língua espanhola define como “o que é tão confuso e obscuro que não se pode entender”), navego na Internet e relaciono-me com a comunidade internacional em inglês e, graças a essa língua, reconheço-o, entendo-me com meio mundo. Em francês leio um par de revistas de publicação semanal e os livros que me fornecem os colegas de uma editora com que colaboro, e, por fim, pecando por pedante, posso-lhes ainda dizer que há mais de 25 anos ganhava a vida a ensinar esperanto, essa língua carregada de utopia, inventada por um tal de Zamenhof e que eu aprendi nos EUA com um poliglota natural de Bilbau.

Sempre soube, porque os membros da minha família foram picados durante umas quentes férias estivais pelo mosquito da curiosidade, que um antepassado meu andou por pedreiras castelhanas e deixou descendência por essas terras, mas foi há tanto tempo que se perdeu o rasto. Mas, oiçam, isto da curiosidade agora tem remédio, desde que um laboratório norte-americano faz provas de ADN, confidenciais, segundo dizem, por pouco mais de 100 dólares. E como na minha idade os caprichos já são poucos, enviei de imediato para a morada indicada, efectuado o pagamento correspondente, o kit que previamente me facultaram. Poucas semanas passadas e a resposta provocou-me uma tremenda comoção, e graças a ela fiquei a saber de numerosos ramos étnicos que se mesclaram no meu sangue, o que me provocou, para além de tudo, uma grande emoção. Hoje, aproveito qualquer encontro na intimidade para dar a conhecer aos mais próximos o relatório sobre a mescla singular nos glóbulos do meu sangue.

Pela descrição das minhas origens, soube de antepassados no Chile, o que me reconforta, pois uma das praças da sua capital, mais a paragem de autocarro correspondente, tem o meu apelido. No entanto, os antepassados não cruzaram o oceano no sentido do poente, mas no sentido contrário. Perplexo, descubro na biblioteca que aqueles cujos restos correm pelo meu sangue falavam kunza e que a língua, espalhada pelo deserto de Atacama, foi arrasada pelos colonizadores espanhóis que levavam a sua para a conquista e o latim do missal para assegurar a salvação. Causou-me um profundo impacto o conhecimento de que aqueles autóctones eram assados na grelha, para prologar o seu sofrimento, e que os cruéis cruzados mofavam das suas vítimas na língua do grande Cervantes.

A pista do ribonucleico decifrado pelo laboratório levou-me até não muito longe de Atacama, a zonas também desérticas onde os Wari, Paracas e Nascas desenvolveram as suas culturas antes da chegada das espadas e do rosário. Alegrou-se o meu ânimo com semelhante pedegree, mas logo esmoreceu ao inteirar-me que os seus idiomas, da família do aru, do tronco do aymara, foram substituídos pelo castelhano até ao ponto de desaparecerem. Tinha ouvido algo a esse respeito, pelo que tomei de novo o caminho da biblioteca, perto da minha casa, para rever a extinção das línguas no território a que agora chamam Peru. A surpresa foi enorme: kuli, den, uro, cholón, chiribaya, muchik, puquina… Pelo menos 18 línguas aniquiladas pela língua cuja Academia alardeia o slogan: “brilha e dá esplendor”.

Horror! As dúvidas começaram a apagar essas ideias colegiais de que os idiomas não têm cor, como a água. E se um idioma não é assim? Elio Antonio Martínez de Cala y Hinojosa, natural de Lebrija e, por associação, conhecido pelo sobrenome de Nebrija, já o tinha feito ver à sua rainha, Isabel, a Católica: “Sua Majestade, a língua é o instrumento do Império”. Castela já não é, contudo, o umbigo. Actualmente, o México é o Estado com maior número de falantes de castelhano – mais de 100 milhões –, ou, o que vai dar ao mesmo, mais de 95% da sua população. Desde que se criou a Nova Espanha, a língua de Castela foi oficial e a única na Administração. A partir de então, a política colonial e a crioula foi nítida: castelhanizar os indígenas. Nesse processo, imposto novamente com sabres e missais, chegaram a desaparecer uma centena de línguas. Dez vezes dez.

Entre as peculiaridades que certamente me alimentam a vaidade, dizia o meu ADN decifrado que um antepassado longínquo provinha das chamadas Ilhas Canárias. O parente, ou os parentes, deveria ter habitado nas ilhas africanas havia muitos séculos. Comunicavam numa língua a que os linguistas modernos chamaram “guanche”, termo inadequado para os mais puristas, que a chamaram “amazighe”, aparentada com os berberes numa história a que Federico Krutwig pôs o seu envoltório romântico quando escreveu Garaldea. Os berberes insulares, juntamente com a sua língua milenar e hoje desconhecida, foram exterminados pelos castelhanos, empalados e com os olhos vazados, vivos, tal como faziam os mongóis aos seus prisioneiros japoneses nas vésperas da última contenda mundial.

Não pensem, todavia, que os meus antecessores provinham todos do outro lado do oceano. Também os tenho nas proximidades e a eles farei referência nas linhas que se seguem. Uma tetravó ou algo assim (o relatório do laboratório não chega a tanta precisão, embora a árvore genealógica que construí a partir das certidões de baptismo do Arquivo Diocesano me tenha aligeirado a investigação) era natural de Beasain. A sua mãe, de Aia. Como, por estas alturas, o tema do sangue já me passava ao lado e só me preocupava com o da comunicação, quer dizer, o da língua, enviei cartas para os respectivos municípios, sobre um assunto de que possuía referências, embora não muito concretas: os castigos a quem não falasse castelhano. O primeiro respondeu-me pouco tempo depois, com uma ordem de 1730: “E que não se permita falar em basco, mas apenas em castelhano, colocando o anel e castigando-os como merecem”. O segundo demorou várias semanas e só quando mandei uma nova carta recebi a resposta, neste caso com um documento de 1784: “Dará ordem severa de que nunca falem entre si o basco, mas o castelhano. E para pontual observância desta ordem valer-se-á do meio comum ou do anel, tomando cada sábado razão do seu paradeiro e repreendendo, advertindo ou castigando directamente o que se encontrar com ele”.

A história do anel é mais recente, contada por escritores refutados. O anel, símbolo do castigo, circulava entre os que não conheciam o castelhano. Uma humilhação. Um pensamento passageiro sugeriu-me que o anel pudesse talvez ser uma versão moderna dos velhos castigos aplicados aos indígenas, que naqueles tempos, por não terem alma, eram decapitados por não aprenderem a língua românica, sem saber, precisamente, que coisa era essa de românico. Mas pareceu-me demasiado atrevido fazer semelhantes suposições com tão poucas certezas e abandonei a ideia. Retomei-a, contudo, quando reparei que em 1936 um habitante de Arrasate foi detido por falar em basco na rua e fuzilado de imediato. Casos isolados? Provavelmente.

Não gostaria, ainda assim e graças às informações que possuo sobre o meu ADN, deixar passar a ocasião para manifestar algumas reflexões sobre essas preocupações que me têm perturbado nestes últimos anos. Devo reconhecer que não fui o único a efectuar as provas e que, seguindo o caminho aberto, alguns dos meus amigos realizaram pela Internet os seus respectivos pedidos. As respostas, como era de esperar, são variadas. Os seus antepassados mais próximos foram sefarditas, moçárabes, asturianos, catalães… Como disse antes, depois de tantas voltas, o sangue tinha perdido o seu valor e centrava as minhas indagações nas línguas. Também estas, citadas, tinham desaparecido ou visto reduzida a sua área de influência, como a do basco, por castigos, proibições, etc.

E, embora não seja muito amigo da simplificação e goste dos matizes, cheguei a uma conclusão rotunda. Uma língua românica de âmbito reduzido como o castelhano converteu-se em língua de larga abrangência por questões de conquista e colonização. E que a sua expansão foi como a dos mexilhões-zebra que acabam de chegar às nossas regiões húmidas: predadores vorazes que acabam num instante com todas as espécies autóctones cuja sobrevivência tinha sido possível graças à paciência da evolução.

Assim, as razões da minha preocupação aumentaram, ao verificar que no meu país e noutros que visito com frequência uma série de mefistos modernos querem reviver velhos louros e dar um novo impulso à depredação. Acabam de nos anunciar os linguistas que em Oaxaca irá desaparecer dentro de poucos anos a língua xwja, falada unicamente por oito pessoas com mais de 70 anos. É a próxima numa lista de centenas de línguas que irão desaparecer num abrir e fechar de olhos por causa de quatro grandes agentes exterminadores, no dizer do canadiano Mark Abley: castelhano, chinês, russo e inglês. As razões para estas preocupações são poderosas e, desde a minha humilde posição, influenciada sem dúvida alguma pela riqueza recentemente descoberta nos meus glóbulos sanguíneos, gostaria de chamar a atenção, precisamente, para estas línguas exterminadoras. Talvez valesse a pena realizar um manifesto comum de depredados. Não sei. Para isso existem as associações e as cabeças pensantes. Eu só alerto para os devastadores, porque percebo na circulação do meu sangue que os seus efeitos são letais.

Iñaki EGAÑA

Fonte: Nabarralde