quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Ordálios medievais na Audiência Nacional

O ordálio, também conhecido como Juízo de Deus, foi uma prática de categoria jurídica utilizada na Europa medieval. Para determinar a culpa ou a inocência, submetia-se o acusado a provas como segurar ferros em brasa ou permanecer um longo período debaixo de água. Só se sobrevivia se prevalecesse o entendimento de que Deus o considerava inocente e de que nenhum castigo deveria ser aplicado. A maioria morria. O autor assegura que “as provas que se utilizam na Audiência Nacional contra os cidadãos bascos, acusados de supostos delitos políticos, transformados e convertidos em crimes terroristas, são ordálios”.

A 30 de Setembro de 1938, no terceiro ano da sublevação militar, Dolores Ibarruri, nascida nas minas de Gallarta, era nomeada vice-presidente das Cortes republicanas espanholas, na sessão que decorreu em Sant Cugat del Vallés, em Barcelona. No seu discurso, assinalou: “Devemos dizer, para vergonha das democracias, que não é tanto em consequência da força do fascismo que se vêem hoje desamparados os povos da Europa, mas antes pela cobardia das democracias, e sentimos o rubor de que os povos mais chamados a defender os princípios democráticos sejam os que claudicam perante a audácia do fascismo”.

Passaram quase setenta anos, e as suas palavras podem ser reproduzidas sem perder um ápice de autenticidade e vigência.

Há uns meses, um amigo dizia-me que o termo ‘fascismo’ era já um anacronismo, um termo completamente desfasado. Estando pela minha parte em total desacordo, recordei a expressão de Françoise Giroud: “Assim começa o fascismo. Jamais nos diz o seu verdadeiro nome, enquanto ascende e escala; e, quando aparece à superfície e nos mostra a ponta do nariz, diz-se: Será ele? Tu acreditas? Não vamos exagerar! Mas um dia apanha-se com seu impacto em plena face, e será demasiado tarde para o expulsar”.

Sim. Os povos mais chamados a defender os princípios democráticos, a velha Europa, são os que estão a claudicar ante a audácia e o atrevimento dos mais poderosos, que encontram o pedestal da sua macabra glória na fragilidade defensiva e no sofrimento dos homens.

Foram imperadores. Hoje são os papas, os reis, os seus juízes e lacaios. O fascismo liberal concede impunidade às elites dirigentes e aos grandes proprietários e, simultaneamente, aumenta o controle e a repressão, aplicando o princípio da “tolerância zero” aos cidadãos comuns, a quem apenas se concede a dignidade do voto.

«Estamos habituados – escreve Serge Halimi (Le Monde diplomatique, Julho de 2008) – a que as elites da União Europeia atentem contra a soberania popular. O atentado à democracia converteu-se na marca de fabrico da ‘Europa’, mesmo quando se apresenta como o reino da democracia na Terra».

Hoje, os responsáveis políticos do Estado espanhol – escoltados pelos responsáveis autonómicos – não só não se desprenderam como se mantêm impregnados da ideologia dominante e fascista do ditador Franco e dos seus antecessores. Com a sua atitude beligerante a toda a mudança democrática, estão inclusivamente a servir de exemplo tétrico e sinistro aos países que um dia foram pioneiros em leis e comportamentos humanos e democráticos.

Afirmava-o Iñaki Goioaga, advogado dos acusados no sumário 33/01: “Depois de trinta anos, continuamos num estado policial com deficit democrático” [GARA, 07-07-2008].

O deficit democrático alcançou um nível tão elevado de desenvolvimento que se converteu em absoluta quebra democrática. Gilles Deleuze assinala que «seria muito mais simples recordar que a questão da violência, incluindo o terrorismo, não parou de agitar o movimento revolucionário e operário desde o último século – XIX – sob as formas mais diversas, como resposta à violência imperialista». Mas ao Governo não lhe interessa a verdade, e muito menos perder votos no Congresso por tentar descobri-la.

A prova mais evidente da quebra democrática do Estado espanhol e do seu caminho em direcção ao fascismo liberal é que os seus julgamentos políticos se converteram em “Julgamentos de Deus”, em ordálios medievais. Deus e o reino unidos na opressão e no silenciamento do povo. Qualquer tipo de oposição ao sistema torna-se uma heresia, terrorismo, colaboração com grupo armado, detenção e castigo.

Sim. São ordálios. As provas que se utilizam na Audiência Nacional contra os cidadãos bascos, acusados de supostos delitos políticos, transformados e convertidos em crimes terroristas, são ordálios. A Faculdade de Direito da Universidade de Rennes (Bretanha) define os ordálios como a técnica jurídica que consiste em fundamentar as denúncias da acusação com provas não racionais, nem lógicas, nem existentes.

Aplicou-se esta técnica jurídica na Antiguidade e ao longo da Idade Média. Submetia-se o acusado a provas físicas extremas, e só no caso de sair ileso destas ficava provada a sua inocência. A morte na prova era um sinal claro de culpabilidade. Segurar um ferro em brasa nas mãos sem se queimar, metê-las em água fervente ou engolir chumbo fundido. Se o acusado se queimasse, era considerado culpado.

«No fundo, trata-se simplesmente – como refere Michel Foucault em A Verdade e as Formas Jurídicas – de mostrar publicamente quem é o mais forte. Como no velho direito germânico, em que o processo é apenas a continuação, regulamentada, ritualizada, da guerra... Encontramo-nos numa fronteira difusa entre o direito e a guerra, na medida em que o direito é uma maneira de dar continuidade à guerra».

Em pleno século XXI, os “julgamentos de Deus”, as torturas para obter confissões e declarações de culpa dos acusados continuam a ser moeda corrente nas autoproclamadas democracias. Iniciado o caminho da repressão contra a dissidência política, a mesma inércia coerciva leva governantes, magistrados e polícias a perpetuarem o castigo até à anulação do indivíduo.

«A prova como verdade deixa de existir. As declarações policiais não servem para determinar quem diz a verdade, mas estabelecer, uma vez mais, quem é o mais forte, quem tem razão. Traduz assim a força – polícia, juízes, carcereiros – em direito da monarquia. A prova não é esclarecedora nem geradora de verdade, mas de direito e de domínio. Por isso mesmo, não se apela a testemunhas reais, apenas a testemunhos de força.» (A Verdade e as Formas Jurídicas).

Século XXI, cambalacho da perseguição sistemática e brutal contra os opositores originários de Euskal Herria, a troco dos aplausos de uma Espanha tão dominada quanto totalitária, que garanta aos governantes a sua perpetuidade no poder e na direcção do reino. Sendo precisamente essa unidade do reino a prova que faculta e justifica todo o tipo de desmandos do poder, as suas brutalidades aplaudidas pelo povo e silenciadas por elites intelectuais inexistentes. O preço da unidade da sua Espanha, a imperial, é a opressão sobre quem afirma, como nós, não pertencer a ela.

Fermin GONGETA
[sociólogo]

Fonte: Gara