segunda-feira, 15 de março de 2010

Uma viagem de amor


Numa sexta-feira qualquer sai de Gazteiz um autocarro repleto. As mulheres, maioria experimentada, organizam tudo. São mães, irmãs, companheiras, filhas de presos, todas igualmente diligentes, sorridentes e camaradas. Pela frente, 2500 km. Soporífico filme infantil, só para os pequenotes, elo mais frágil da viagem. Uma rapariga cobra o bilhete: 100 euros, mais as refeições, gastos, ajuda ao preso… Uma jorna para o viajante esporádico, uma extorsão cruel para as famílias habituais. Balbuciando maldições, tento dormir.

Paragem em Sevilha, de onde alguns partem para Huelva e Algeciras. Continuamos até chegar a um bar, enclave entre as três prisões de Puerto, a que chamam “El Cepo”. Desmazelada e dorida, uma pessoa não está para brincadeiras. Dizem que o dono do Cepo se porta bem, mas que, para fazer frente às críticas sobre o negócio que faz à custa dos etarras, exacerbou a sua espanholidade, com uma bandeira rojigualda num mastro, ao peito dos empregados, nos pacotes de açúcar… Uma foto de Iturgaiz (que haverá aqui?) preside ao bar. As pessoas recompõem-se do cansaço da viagem e as mulheres, uma vez retocadas, ficam todas bonitas para os seus amados.

Puerto de Santa María: lugar com maior número de prisões per capita da Europa. Perto, a base militar de Rota completa a paisagem de vedações e essa degradação estética indica certa degradação moral do povo que a suporta. Por isso é terra abundante em señoritos, polícias, confrarias e macarenas, às quais não param de pedir perdão pelos seus pecados. O único mérito que Puerto possui para ser um presídio é a sua distância de Euskal Herria, isto é, aumentar o dano aos familiares. Se pudessem, mandá-los-iam, como no século XIX, para presídios de Havana ou Cartagena das Índias. A maldade parece algo genético na classe política espanhola que, facha ou progressista, continua enferma de Inquisição, de tiques imperiais, de subdesenvolvimento democrático.

Fala-se por telefone, através de vidros blindados, mas não nos obrigam a deitar fora a chiclete. Alguém pede que lhe deixem passar os óculos, “para o ver de perto”. Outro pede para passar papel e lápis para anotar os recados. Não. Só a memória. As carcereiras são mulheres, como a Directora Geral das Prisões: que triste que a emancipação tenha conduzido também a isto. Levam-nos por pátios internos até aos locutórios. Mercedes Gallizo e a sua equipa liberal gostam de pintar e adornar estes campos do terror com quadros, murais e patéticas jardineiras. Na prisão de Arbolote, esses pátios de cimento, grades e espinhos têm nome: “Plaza de Antonio Lara”, “Plaza de la Constitución Española”… Penso nos poucos motivos que têm para amar Antonio Lara e Espanha. E deduzo que não haja no mundo ninguém mais preso que um carcereiro.

À entrada das prisões costumam colocar o artigo 25.2 da Constituição Espanhola: “Las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación y reinserción social (…). En todo caso tendrá derecho a un trabajo remunerado y a los beneficios correspondientes de la Seguridad social, así como el acceso a la cultura y al desarrollo integral de su personalidad”. Talvez seja por isso que os têm isolados, sozinhos na maior parte do dia, lhes prolongam as penas, lhes deixam dois livros no máximo, lhes colocam entraves aos estudos, e procuram que os irmãos ou os membros dos casais presos estejam a milhares de quilómetros de distância uns dos outros. É a dupla, a cínica moral espanhola.

Como sempre, somos acompanhados por outros grupos tribais: ciganos, párias, emigrantes… Eles são tratados ainda com menos respeito. Gostaria de acreditar que no dia em que já não houver apelidos bascos nas prisões, e que já não nos cruzarmos com esta gente junto aos muros, havemos de continuar a lutar por eles, vítimas da pobreza e da marginalização. Porque as prisões não servem nem sequer para os tarados que as inventam.

2500 km para falar quarenta minutos. Nova norma: fecham-nos no locutório como se fôssemos mais um preso, para que não possamos saudar os restantes. Por fim, na cabine em frente, Germán Rubenach. Sorriso intacto e rosto riscado, do tiro que lhe atravessou a cabeça, há já duas décadas, na Foz de Lumbier. Recordamos as palavras do ministro do Interior, Corcuera, acusando-o de tentar cometer suicídio depois de ter morto os seus dois companheiros, Susana e Jon. Se no julgamento ficou provado que Germán não o fez, quem foi então, se ali só estava a Guarda Civil? Sem dúvida, os mesmos que o acusaram, mas isso nunca foi julgado. Os culpados estão na rua enquanto Germán tem 20 anos de pena cumprida e agora mais dez de gorjeta, com a cruel “Doutrina Parot”. Como o caso de Rubenach, quantos despropósitos escondem as prisões? Para Espanha, o agravo comparativo é a lei.

Correu a notícia entre os presos: hoje David Gramont vai conhecer o seu filho Ilai, concebido atrás das grades. Todos contribuíram com alguma coisa para dar um presente ao pai afortunado. A vida e a esperança abrem caminho, mesmo atrás dos barrotes.

Entre os familiares há inquietação: a partir de hoje só lhes permitem ir aos locutórios de dois em dois, o que, para além de atrasar o regresso, faz com que não haja tempo e ponham outros dias de visita, impedindo as viagens colectivas. Há outros incómodos: numa prisão não se deixaram inspeccionar e não tiveram encontros íntimos, só locutório; noutra aceitaram as inspecções em troca de poder abraçar os seus. Para alguns a visita deixou um sabor doce, para outros amargo. Que fazer? Vejo a Gallizo, a maoísta, no seu gabinete, urdindo a mesquinhez, inventando mais barreiras, impedindo abraços… E pergunto-me que poção bebeu na Transição tanto galito vermelho para se tornarem corvos necrófagos.

Na espera, discutimos: todas estas medidas de mentes enfermiças, destinadas a foder a vida a presos e familiares um pouco mais cada dia, acentuaram-se nestes meses como resposta rubalcabiana ao processo democrático? Há quem defenda que não, que a máquina prisional espanhola é assim, progressivamente perversa, obstinadamente cruel, imobilizada como está nas suas inércias atávicas. Talvez seja as duas coisas.

Outra vez noite, andamos quilómetros em sentido inverso. A raiva gerada por tanta prepotência faz-se pequena face ao amor que se desprende do autocarro. Olho para os pequenotes futuro, para as suas mães coragem, para os velhos orgulhosos… Mais uma semana. Um capítulo épico da história basca está a ser escrito nesses autocarros, nessas celas isoladas, nesses tribunais de opereta grosseira, nessas esquadras encapuzadas. E está a ser levantada acta de tudo isso. O que sofre tem memória, disse Cícero. E algum dia, mais cedo ou mais tarde, muitos terão de prestar contas pelo que fizeram e muitos mais, pelo que silenciaram.

Jose Mari ESPARZA ZABALEGI
Fonte: nafarroan.com