terça-feira, 30 de março de 2010

Que ninguém olhe para o céu; não são pára-quedistas


Euskal Herria tem razões para desconfiar da denominada «comunidade internacional». Os seus cidadãos, tal como o resto do mundo, viram com os seus próprios olhos como essa comunidade permitiu, sem pestanejar, a existência sistemática da injustiça em todo o mundo. Mais, muitos dos seus membros promovem-na sem complexos. Não gera precisamente confiança ver como essa comunidade internacional oferece, em não poucos casos, uma colaboração obscena e irresponsável em genocídios cruéis, na continuidade de máculas como a fome e a pobreza, no alastrar de diversas doenças a continentes inteiros ou na exploração da natureza até ao limite das suas capacidades. A comunidade internacional escuda-se num mecanismo que a exime de responsabilidade, o que ainda lhe serve para vetar o que deveria ser o seu objectivo: a busca de um mundo mais justo - ou justo, simplesmente. Ruanda, Afeganistão, Iraque, Tchetchénia, Somália, Palestina, Honduras... são exemplos recentes de países que foram condenados por alguns dos membros dessa comunidade internacional à guerra, passando, para tal, por cima da sua própria legalidade, obrigando os seus habitantes a escolher entre o extermínio e o exílio e empurrando povos inteiros para a miséria. Tudo isso com a ajuda de outros poderosos membros e ante o silêncio cúmplice de outros tantos.

Mas Euskal Herria e os bascos têm razões próprias para desconfiar da comunidade internacional. Não já baseando-se nesses trágicos exemplos, mas porque na sua história existem tristes capítulos em que líderes de nível mundial faltaram à palavra dada ao povo basco, traíram as suas esperanças e condenaram-nos a sofrer injustiças que passaram à história negra da humanidade. Os mais conhecidos têm que ver, sem qualquer dúvida, com o franquismo. Por exemplo, dizem que em 1945 o general Charles De Gaulle se emocionou ao inteirar-se da forma como o Batalhão Gernika tinha lutado na libertação de Paris com a ikurriña por bandeira. Existe, de facto, uma foto que imortaliza o momento em que o general francês se põe em sentido diante da bandeira e dos combatentes bascos. Essa emoção não se traduziu, no entanto, em agradecimento algum, e a França não fez absolutamente nada pela causa basca. Minto, reprimiu o euskara.

Paradoxalmente, a organização que fundou aquele batalhão, a ANV, faz hoje parte da «lista europeia de organizações terroristas», já que esse partido foi condenado pelos tribunais espanhóis por ser sucessor do Herri Batasuna, fundado em 1978. Aquilo que a lógica humana não suporta, dentro dos limites do espaço/tempo, suporta-o esta comunidade internacional, cujo sistema administrativo e legal pode chegar a legitimar.

Em poucas palavras, historicamente a comunidade internacional comoveu-se com o «Guernica» de Picasso enquanto ignorava o povo que o inspirou, o país dos cavalos que relincham debaixo das bombas, o povo que procura o seu caminho com uma candeia que um punho mantém ao alto frente a tanta escuridão.

Todavia, numa reflexão que vai mais além da nossa realidade concreta, não convém esquecer que a função actual da comunidade internacional não é a de libertar povos injustamente subjugados pelos seus vizinhos, maiores e mais poderosos. E, dada a forma como essa comunidade está organizada e a actual correlação de forças a nível mundial, de momento é melhor não aspirar a tal, pelo menos no curto prazo. Nestes últimos anos os factos mostraram que a ideia de relacionar intervenções militares internacionais com a de restituir a justiça ou a democracia culminou sempre em tragédia - e, muito frequentemente, em farsa. Com todos os matizes, isto serve tanto para os Balcãs como para o Afeganistão. E isso apesar de existirem, pelo menos teoricamente, «guerras justas». Existem não porque o diga Barack Obama - independentemente do facto de pensar ou não que as que lhe calharam defender sejam justas -, mas porque assim o evidencia a história contemporânea. Alguns dos seus grandes cronistas, como George Orwell ou John Reed, deram testemunho disso. Também não se deve aqui esquecer que actores dessa história, como Jean-Paul Sartre ou Olof Palme, julgaram uma vez que a guerra dos bascos pela sua liberdade é uma guerra justa.

Por tudo isso, quem realmente deseja um mundo melhor e, seguindo uma máxima internacionalista, quer começar a construi-lo em casa, a partir do seu próprio país, deve ter uma agenda internacional que inclua a reforma das instituições que hoje compõem essa comunidade internacional. Mas, no caso de Euskal Herria, para poder conseguir ser sujeito dessa mudança, tem de aspirar a fazer parte dessa comunidade internacional, como o são a África do Sul, a Irlanda, a Suécia, a Noruega, a Eslovénia... ou, se se preferir, a Bolívia, o Equador ou Cuba. Com direito a voto, como nação que é e estado que deve ser, se os seus cidadãos assim o decidirem. Isso é o Estado basco. Isso será ou não será nada. Pode-se estar contra ou a favor, mas não se pode desligar, seja de forma ingénua ou maliciosa, do conceito de comunidade internacional. Pelo menos não politicamente.

Neste contexto, a Declaração de Bruxelas volta a pôr em cima da mesa essa contraditória relação dos bascos com a comunidade internacional, mas desta vez em sentido positivo. As denúncias de diferentes organismos internacionais de direitos humanos, especialmente os dependentes da ONU dedicados à prevenção da tortura e das detenções arbitrárias, transformam-se agora num apoio explícito à iniciativa da esquerda abertzale e à capacidade que tem de trazer uma mudança estrutural ao conflito basco. Uma mudança positiva para todas as pessoas que aqui vivem e são afectadas pelo conflito. Portanto, os que até agora tentaram menosprezar essa iniciativa deverão mudar de guião. A relevância dos signatários não escapa a ninguém e dá a justa dimensão do desafio e das oportunidades que se abrem. Não são pára-quedistas, nem num sentido nem no outro. Isto é, podem ajudar mas não podem fazer o trabalho que deve ser feito pelos cidadãos bascos e os seus representantes; e a sua contribuição pode ser positiva porque não caíram do céu e têm o conhecimento e a experiência necessária para ajudar a encontrar um acordo. A declaração coloca o conflito basco na agenda internacional, algo que os sucessivos governos em Madrid tentaram sempre evitar, e coloca-o como aquilo que é: um conflito político. Em consequência, a sua resolução deverá ser também política.

No entanto, é importante entender que por si mesmo o documento não tem valor maior se não for acompanhado de compromissos e decisões. Decisões que, em primeira instância, correspondem a quem o documento se dirige, às partes na liça. Mas os compromissos têm de começar no plano individual e estruturar-se através de organizações e movimentos políticos apropriados para esta fase do processo político em marcha. Não tem cabimento delegar essa tarefa na classe política nem na comunidade internacional.

Como já se disse, a comunidade internacional não liberta povos, mas dentro do contexto europeu pode ajudar a homologar um acordo justo e democrático que abra uma nova fase política em Euskal Herria. Um ciclo em que a luta pela liberdade dos bascos continuará a existir, que ninguém se iluda, mas na qual - caso seja alcançado - se terá avançado no reconhecimento da sua condição de nação e do seu direito a decidir o seu futuro. Essa fase não vai ser aberta por um mandato da ONU, mas por um mandato claro do povo basco.

Em suma, em Euskal Herria ninguém deve ficar à espera que, após a Declaração de Bruxelas, comecem a cair do céu latas de carne de pára-quedas, como no Plan Marshall, nem soldados que impeçam as injustiças e os abusos. Mas também ninguém deve dar demasiada importância aos preservativos XXL que, tal como os norte-americanos faziam na guerra psicológica contra os vietnamitas, as FSE e os meios de comunicação espanhóis mandam para terras bascas, para nos fazer crer que, mais uma vez, a batalha está perdida. Ninguém nos vai libertar, mas pode-se conseguir que ninguém nos impeça de nos libertarmos a nós mesmos se se conseguir o apoio da maioria do povo.

Uma maioria de cidadãos bascos pede o reconhecimento de Euskal Herria como nação, que tem direito a estruturar-se enquanto tal, a que seja facilitado o desenvolvimento da sua cultura e, sendo esse o caso, com base nos acordos alcançados e sempre dependendo da vontade popular, a conseguir formar-se como estado independente na Europa. É um pedido legítimo e democrático, e deve ser atendido e respeitado. Não o aceitar é tentar perpetuar os privilégios políticos e culturais que perduram desde o franquismo.

Não vai ser fácil, mas a bola está a rolar.

Iñaki SOTO
licenciado em Filosofia
Fonte: Gara

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VER:
«Apoio internacional na sequência de "Zutik Euskal Herria": Protagonistas-chave dos processos irlandês e sul-africano», de Josu JUARISTI

«Carta aberta a Ángela Murillo», de Iñaki IRIONDO

Editorial do Gara: «A Declaração de Bruxelas estabelece os parâmetros do conflito e abre uma oportunidade»