sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Joxe Arregi e Steve Biko


Hoje, 28.º aniversário da morte por tortura de Joxe Arregi, Xabier Makazaga homenageia o zizurkildarra e estabelece um paralelismo entre a sua morte e a do líder sul-africano Steve Biko, igualmente morto às mãos da Polícia após a sua detenção. Em ambos os casos a impunidade dos torturadores e colaboradores foi escandalosa. A diferença que Makazaga observa hoje consiste no facto de que, com o final do apartheid na África do Sul, essa impunidade acabou, mas não assim no Estado espanhol.

Neste 28.º aniversário da horrível morte sob tortura de Joxe Arregi, queria prestar homenagem tanto a ele como ao célebre líder negro sul-africano Steve Biko, a quem, três anos antes, também tinham feito descer ao pior dos infernos nas masmorras do apartheid, facto que inspirou a inolvidável canção de Peter Gabriel, «Biko», de que se criaram tantas versões, e o célebre filme Grita liberdade, de Richard Attenborough. E queria prestar-lhes homenagem recordando ambos os casos e mostrando quão parecidos foram.

Os juízes sul-africanos do apartheid absolveram os cinco polícias que torturaram Biko até à morte e, embora aquele horrendo regime tenha desaparecido há já alguns anos, ainda hoje esses torturadores continuam a ser inocentes aos olhos da justiça sul-africana, que com profundo pesar admitiu que, por enquanto, não dispõe de provas para os incriminar. E, infelizmente, nunca disporá delas, pois, devido à incomunicação, as únicas testemunhas do sucedido foram os polícias.
A Joxe Arregi, também o massacraram durante nove intermináveis dias na esquadra, de tal modo que ao dar entrada no hospital-prisão de Carabanchel, onde viria a falecer pouco depois, o seu corpo era um monte de chagas, hematomas e queimaduras. E, apesar de as primeiras diligências terem demonstrado que foram pelo menos 73 os polícias que participaram nas torturas, apenas dois deles foram julgados, e foram escandalosamente absolvidos nos dois primeiros julgamentos.

Contudo, no final o Supremo Tribunal não teve outro remédio senão condená-los a uma dessas ridículas penas habituais em casos de tortura, porque era irrefutável que “as queimaduras de segundo grau nas solas dos pés foram causadas no decurso da investigação policial”.

Foi a única sentença condenatória ditada em casos de mortes por tortura em Euskal Herria, e não restam dúvidas de que, sem aquelas queimaduras que tanto davam nas vistas, nem sequer teriam recebido aquela tão ridícula condenação, o que não impediu em absoluto que posteriormente ambos tenham chegado a ocupar o mais alto cargo dentro da carreira policial: comissários principais da democrática Espanha torturadora.

Ainda por cima, de todos os polícias inicialmente processados por aquele horrível crime, cinco ocuparam posteriormente postos de alta responsabilidade na Polícia espanhola. E, se os cinco processados ascenderam assim, poucas dúvidas restam quanto ao que terá sucedido aos restantes 68 torturadores, cujos nomes desconhecemos.

Pois bem, ao comparar os casos de Steve Biko e Joxe Arregi, vê-se claramente a sua semelhança, a começar pelo facto de que a vinda cá para fora das arrepiantes imagens com os seus cadáveres teve a ver seguramente com a dimensão de ambos os escândalos.

Por outro lado, tanto os polícias espanhóis como os sul-africanos deram a mesma explicação para tentar justificar as terríveis lesões que os falecidos apresentavam: o detido agrediu-os, ocorreu uma luta e, ao ser dominado pela força, ficou ferido acidentalmente. Os sul-africanos alegaram que as feridas de Biko se ficaram a dever ao facto de ter batido contra um muro e o chão da esquadra, e a versão dos espanhóis foi a de que não puderam impedir que Arregi “batesse contra as mesas e os móveis”, pois este apresentava tal variedade de lesões que superfícies lisas como muros e chão não as podiam justificar em nenhuma circunstância, como no caso de Biko.

Os médicos forenses sul-africanos assinaram certidões falsas ocultando o verdadeiro estado de saúde de Biko, e a actuação dos espanhóis foi também de todo escandalosa, pois o relatório de saída da esquadra afirmava que Joxe Arregi tinha as mesmas lesões e marcas que à entrada, o que foi absolutamente desmentido pelo relatório de entrada em Carabanchel, onde faleceu.

Logo, no caso de Arregi, apesar da incomunicação que torna praticamente impossível toda a prova, tanto os polícias como os médicos forenses deixaram marcas irrefutáveis da sua actuação criminosa; no de Biko, só os forenses. E, face à dimensão dos escândalos, em ambos os casos as autoridades não tiveram outro remédio senão tomar certas medidas, impondo penas e sanções puramente simbólicas.

As sul-africanas, que evitaram a todo o custo durante anos tomar medida alguma, no fim viram-se obrigadas a admoestar um dos médicos forenses por “conduta imprópria” e a retirar provisoriamente a licença médica a outro por “conduta desonrosa”. E a actuação das espanholas foi ainda pior, porque a única coisa que fizeram foi simular a demissão fulminante do máximo responsável pela ocultação descarada do terrível estado em que se encontrava Arregi depois da sua passagem pela esquadra. Quando a tempestade amainou, este voltou em silêncio ao seu lugar; em silêncio e com outro nome.

O Colegio Oficial de Médicos de Barcelona solicitou que se procedesse à abertura de um processo contra ele e os seus subordinados, mas o Colegio de Madrid nem sequer respondeu, e os 200 médicos bascos que solicitaram que eles fossem julgados e sancionados também não obtiveram qualquer resposta.

Quanto aos restantes torturadores, que não deixaram atrás de si tal quantidade de vestígios em ambos os casos - os outros 71 polícias que também participaram directamente no inferno que Arregi padeceu e os cinco que fizeram outro tanto a Biko -, não só não foram condenados como, infelizmente, com toda a probabilidade, nunca o serão.

Contudo, na África do Sul, pelo menos conseguiram enterrar o apartheid há algum tempo, e, com ele, a absoluta impunidade que aquele cruel sistema concedia aos torturadores, enquanto os seus colegas espanhóis continuam a gozar da mesma carta branca de sempre.

Com efeito, depois de contornar o melhor que puderam o escândalo do caso Arregi, as autoridades espanholas não tomaram qualquer medida para acabar com essa chaga. Ao invés, continuaram a aperfeiçoar os métodos de tortura e, muito especialmente, a construir um muro intransponível de silêncios cúmplices destinado a tapá-la.

E embora a pressão de prestigiosos organismos internacionais de luta contra a tortura os esteja certamente a afectar bastante, sobretudo porque lhes apontam ano após ano que deveriam suprimir o regime de incomunicação, enquanto persistirem esses silêncios cúmplices, os torturadores continuarão a contar com a cobertura necessária para agir impunemente.

Silêncios cúmplices e também hipócritas, porque afirmam estar contra a tortura, mas nos seus meios de comunicação e na sua prática diária silenciam quase sempre os casos de tortura, ou concedem-lhes uma importância marginal, agarrando-se ao muito batido argumento da falta de provas, pese a ser indiscutível que o regime de incomunicação gera um espaço opaco que impossibilita praticamente toda a prova.

E, como se fosse pouco, no ano passado mudaram o nome à praça de Zizurkil em que figurava o nome de Joxe Arregi desde que este morreu torturado, com a incrível desculpa de que ofendia “a sensibilidade das vítimas”.

Até quando pensam continuar assim?

Xabier MAKAZAGA
membro do Torturaren aurkako Taldea [Grupo contra a Tortura]

Fonte: Gara