terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A que chamam unidade


O conceito de unidade no contexto político é objecto de análise aturada por parte do autor neste artigo. O seu lugar central no ordenamento jurídico espanhol leva-o a falar de uma Constituição “ditada por um povo dominante para evitar a liberdade máxima, que é a de se ser ou não espanhol”. Numa segunda fase desta análise constata que a negação dos direitos nacionais conduz a “um foco de rebeldia [...] que pode alcançar a característica de luta armada”, para a qual só contempla uma solução: a arbitragem.

É inevitável que façam apodrecer a política, desagreguem a sociedade e, portanto, a destruam como ente orgânico aqueles que chamam liberdade apenas à capacidade para realizar as suas manobras e entendem por Direito unicamente o que ampara as suas violências face aos dissidentes. Esses “tais” costumam violar a liberdade e o Direito em nome da unidade que, segundo eles, há-de conduzir os povos a uma existência mágica, sem qualquer tipo de confrontações, excepto aqueles irrelevantes e vigários com que justificam a sua estreita democracia. São os falsos profetas que, ancorados na sua imobilidade e nos seus egoísmos, clamam contra a renovação da vida e impedem o cultivo aberto e frutífero das ideias, em muitas ocasiões em nome da paz. Detêm a vida até a transformar num existir desossado e inane, num jogo virtual de possibilidades que são realmente vácuas. Lembram com a sua retórica o cardeal Richelieu quando, no seu majestoso gabinete de amo de França, reprovava as manifestações dos súbditos esfomeados com a famosa advertência: “Mas não estamos bem assim?”.

A que chamam unidade os que tecem as constituições inalteráveis, promovem as leis prevaricadoras e decidem a Polícia do espírito como se repartissem o pão da paz? Contemplando a sua governação das coisas, perguntamo-nos se devemos falar de unidade referindo-nos ao enquadramento em que todos possam decidir os seus posicionamentos variados ou se temos de aceitar como unidade aquela situação em que o povo fica imobilizado nas instituições e é castrado para a criação histórica. Unidade para a criação de vida numerosa ou unidade para a protecção dos interesses unilaterais com uma vida única e dada?

O certo é que a unidade não se expressa no conteúdo único do que se propõe, mas na habilitação de um mesmo quadro em que tudo se pode propor. A unidade é um conceito formal referente ao quadro que faculta todas as possibilidades. Estamos unidos para concordar em paz ou para dissentir em paz; para nos ligarmos voluntariamente ou para nos separarmos sem que se criminalize aqueles que desejam separar-se. Podemos estar unidos a fim de lograr uma desunião materialmente razoável. A unidade é uma pura página em branco sobre a qual todos podem escrever as suas ideias. A unidade é o continente e não o conteúdo. Não se consuma na redução do conteúdo ideológico a um, mas na garantia da possibilidade do conteúdo como múltiplo. Somos unitários para salvaguardar a diversidade sob a proposta de que queremos para que tu queiras: estamos unidos na vontade de ser diversos. Por isso agravam tantos cidadãos textos como o do artigo segundo da Constituição de 1978, em que se afirma com absoluta veemência: “A Constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis, e reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas”. Neste artigo a unidade já não constitui um quadro formal capaz de liberdades para a diversidade, mas determina o conteúdo único em relação à espanholidade dos habitantes do Estado espanhol. É a Constituição ditada por um povo dominante para evitar a liberdade máxima, que é a de se ser ou não espanhol. Estamos, pois, ante um artigo de conteúdo politicamente exclusivo, já que ampara uma situação de unitarismo indissolúvel e simultaneamente paradoxal por contraditório, uma vez que não é lícito falar de nacionalidades sem dar às mesmas toda a dimensão que constitui o seu perfil implícito, que é a de outra soberania possível se assim o quiserem esses povos aos quais subjacentemente se reconhece uma origem não espanhola. A contradição parece patente e, sobretudo, agravante, já que os seus redactores a geram ao distinguir com uma consciência penumbral entre nacionalidades e regiões. Que constitui a nacionalidade senão um derivado administrativo de nação, que é o substantivo que deve ser tido em conta?

A consequência mais grave deste unitarismo é que afecta a raiz mesma do ser nacional e, portanto, deriva na supressão da personalidade fundamental dos cidadãos que rejeitam a sua espanholidade. A unidade deixa de ser, inevitavelmente, um conceito formal que facilita a presença de todas as posturas, para se converter em império de uma decisão ideológica. Uma série de cidadãos regressa da sua condição de cidadãos, segundo pretende a Constituição, para readquirir a de súbditos, como o foram em tempos da sangrenta ditadura. Evidentemente, a partir desta óptica a unidade nega-se a si mesma como plataforma de presenças múltiplas para se converter em arma unidireccional com conteúdo politicamente operativo e opressor.

O exposto anteriormente abre, por seu lado, para uma segunda meditação. Trata-se agora de clarificar se a incapacitação de todo um povo para decidir sobre si mesmo, mediante o álibi constitucional da unidade, não gera uma cidadania de segunda classe ou de tipo colonial. Se esta cidadania se vê negada na sua essência nacional, o historicamente previsível é que esse povo se constitua num foco de rebeldia e de confrontações graves, que podem alcançar as características da luta armada. O erro mais grave que se pode cometer depois é qualificar como terroristas quem faz frente à dominação e fabricar acusações derivadas pelo elementar mecanismo da indução. Com isto se menospreza todo um povo e se arruína a possibilidade formal da unidade como plataforma de encontro para alcançar a simples pretensão da paz e da boa relação entre comunidades étnica, histórica ou politicamente distintas. Chegados a este ponto de violência, a relação, torna-se impossível e só resta uma solução de arbitragem.

Também conduz a uma terceira reflexão este estado de violência suscitada pela dominação de quem manipula a frigideira constitucional. O estado dominador desqualifica as suas próprias instituições com o uso torpe e imoral que delas faz. E não as desqualifica só perante a cidadania dominada e crescentemente agravada por essa opressão cada vez mais áspera, mas perante muitos dos seus próprios cidadãos que realizam uma análise severa da situação. Qualquer cidadão do estado dominador medianamente avisado teme que essas instituições desmanteladas de moral pública acabem por afectá-lo a ele em qualquer momento e em qualquer situação. Umas instituições orientadas pelo simples motor de um poder temeroso de operar graças a uma soberania razoável estão sempre inclinadas a oprimir os seus próprios cidadãos. O poder corrompido resvala inevitavelmente por uma encosta fascista que se acentua cada vez mais. A violência institucional não só descarrega nos oponentes claros às suas pretensões como acaba por viver graças à criação de um inimigo interior que a justifique, muitas vezes encontrado no seio da cidadania afecta, que acaba também corrompida. Como escreve Wright Mills em A Elite do Poder: “Pode haver homens corrompidos em instituições sãs, mas quando as instituições se estão a corromper muitos dos homens que nelas vivem e trabalham corrompem-se necessariamente”. Estamos nesta situação. Euskadi enfrenta um Estado radicalmente corrompido e dirigentes que se corromperam nesse Estado e corromperam os conceitos éticos e políticos que deveriam determinar uma governação recta. Mas tratam de ocultar tudo com conceitos morais devidamente falseados; um deles é o conceito da unidade como disfarce da injustiça.

Antonio ALVAREZ-SOLÍS
jornalista

Fonte: Gara