quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

«Egunkaria»


A parcialidade - moral, política, mas sobretudo jornalística - com que os grandes meios de comunicação tratam as notícias em que se confrontam os interesses do poder estabelecido e dos que defendem alternativas populares é tão notória que o contraste, por mínimo que seja, com a deontologia do ofício do jornalismo deveria fazer corar os profissionais. Neste artigo o autor avança alguns exemplos, como o TGV, o feminismo e a violência de género, o tratamento dado às vítimas e a alguns verdugos... que mostram essa realidade. Ou, por outra, a contínua ocultação de algumas realidades. Tudo isso quando o julgamento do «caso Egunkaria» começou, após sete longos anos, na Audiência Nacional espanhola. Mais que duas bitolas, sistemas métricos contrapostos.

No livro TAV, las razones del NO (Editorial Txalaparta, 2009), faz-se referência ao seguinte acontecimento. Em Maio de 2007, mais de cento e vinte profissionais da investigação e do ensino da Universidade do País Basco tornaram público um manifesto expondo as suas razões contra o projecto do TGV. Numerosos meios (televisão, rádio, imprensa) estiveram presentes na conferência de imprensa. Contudo, no dia seguinte, todos os meios ligados de uma ou outra forma ao politicamente correcto, próximos a este ou àquele partido ou ao dinheiro, fossem públicos ou privados, decidiram que difundir aquilo não tinha interesse. Aconteceu exactamente o contrário com os elogios que a Asociación Catalana para la Promoción de Transporte Público fez ao projecto do «Y basco», que foram amplamente divulgados.

Ano 2009, Dezembro, ponte da Constituição. Com o lema «Treinta años después: ¡Aquí y ahora!», três mil e quinhentas mulheres juntam-se em Granada para participar nas V Jornadas Feministas Estatais. O grosso do feminismo organizado, independente e reivindicativo do Estado está ali. Mais de 130 actividades (mesas redondas, workshops, conferências, exposições, etc.) têm lugar ao longo de três dias. No domingo, dia 6, uma manifestação de vários milhares de mulheres, como nunca se tinha visto em Granada, percorre a cidade. O êxito de tudo aquilo reside não apenas na dimensão quantitativa e organizativa, mas também no conteúdo do que foi debatido. No entanto, enquanto dura tudo aquilo, os meios de comunicação, incluindo os locais, olham para outro lado: aquilo não existe.

Durante meses deram-nos a notícia pontual do desenvolvimento da «Gripe A». De como surgiu na zona norte do México; dos primeiros hospitalizados e mortos em todo o mundo, nos EUA e na Europa; daqueles que foram submetidos a uma quarentena num hotel ou numa escola. Os diversos ministros e conselheiras entediaram-nos com conferências de imprensa em que nos contaram as cento e uma mil ocorrências e medidas tomadas para prevenir tudo aquilo. E enquanto os meios de comunicação anunciavam a enésima praga bíblica, as multinacionais farmacêuticas preparavam o seu enésimo grande negócio. Dois terços das vacinas preparadas não foram utilizados e a parte usada não se sabe muito bem para que serviu, mas nenhum laboratório devolverá nenhum dos 3200 milhões de dólares de lucros obtidos, nem nenhum ministro esperto da Saúde se irá suicidar atirando-se do décimo andar de um hospital depois de comprovar o seu nível de imbecilidade.

A liberdade de expressão (na imprensa, rádio e televisão) não existe para o conjunto da cidadania. Essa liberdade está reservada no fundamental para quem detém o poder, e o poder, para quem tem o dinheiro. Apenas fontes multimilionárias podem aceder hoje à posse e ao controlo das grandes agências de notícias internacionais, das potentes editoras de imprensa e das cadeias de televisão. A informação é mais outro mercado em que só contamos enquanto consumidores. Os proprietários dos meios são os que seleccionam a informação a dar, fabricam a que precisam e marginalizam tudo aquilo que não convém aos seus interesses.

Em torno do julgamento relativo ao assassinato de Nagore Laffage, para além da muita hipocrisia institucional, houve sensacionalismo aos montes. Todas as cadeias, agências e meios estatais e locais devotaram ao julgamento e aos seus enredos rios de tinta e mares de fascínio mórbido. O mesmo se passou noutros lugares do Estado espanhol com assassinatos semelhantes. Quem não deu nenhuma importância ao facto de três mil e quinhentas mulheres terem debatido em Granada, como um dos seus temas mais importantes, a violência machista, não hesitou em dar-nos os mil e um detalhes que rodearam este caso. Aumenta-se a dimensão da árvore e esconde-se a existência do bosque, em cumplicidade absoluta com o habitat que propicia a existência deste.

Com o projecto do TGV, a notícia, quando se dá, costuma estar associada ao protesto e quase sempre relacionada com a violência e a irracionalidade. A Administração foge ao debate público através de mesas redondas ou tertúlias. Basta-lhe repetir vezes sem conta, sem o justificar de modo algum, que o TGV é progresso e bem-estar e que tudo o resto é uma idiotice chapada. E quando cento e vinte investigadores e professoras rompem o cerco informativo, um poder oculto consegue finalmente que as suas razões não sejam divulgadas nem publicadas. As frases ocas dos políticos e conselheiros, desenhadas em agências de publicidade, ocuparão o lugar roubado aos sólidos argumentos da intelectualidade universitária.

Actos convocados por gestos pela sua paz, aos quais acorrem dezenas de pessoas - cargos públicos incluídos - com o objectivo de clamar pela enésima vez contra a mácula do terrorismo, serão difundidos em todas as cadeias e meios, enquanto outros convocados por essas não-vítimas de nada, simples familiares de presos, detidas, incomunicáveis e torturadas, verão proibidos os seus actos por se atreverem a mostrar nesse actos as fotografias dos seus seres queridos, tudo para maior glória dos primeiros mártires do vitimismo oficial, Melitón Manzanas e Carrero Blanco.

O poder compra editoras, jornalistas e tertulianos, e a sua Agência «FBI» («Fontes Bem Informadas»), dependente do Ministério do Interior, depura e pré-cozinha as notícias a divulgar nas primeiras páginas. E quando deparam com um órgão de comunicação para o qual nada do que se disse é válido, porque é independente, euskaldun e não aceita os seus deuses bolorentos e falsos credos, lançam-no para o inferno da Audiência Nacional.

Começou o julgamento do «caso Euskaldunon Egunkaria». Um auto judicial atropelou-o, infringindo todas as normas razoáveis de circulação de que a liberdade de expressão se possa dotar numa sociedade democrática. Leis e tribunais de excepção julgam agora o periódico atropelado, que, seja qual for a sentença, ficará para sempre com as sequelas destes sete anos de suspensão e silenciamento. A massiva comparência de gente na manifestação de Bilbo num dia gelado foi um grito de indignação perante tamanha falta de vergonha.

O Olentzero já passou e as cartas aos Reis Magos já foram enviadas. Não se pede nenhum presente. Pede-se, tão-só e apenas, justiça e liberdade para o Egunkaria e os seus arguidos.

Sabino CUADRA LASARTE
advogado
Fonte: Gara