segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O saco de lona, uma história antiga


A lembrança dos treinos de boxe do seu pai, a dar socos num saco de lona, serviu a Amparo Lasheras, de forma inesperada, para suportar a sua passagem pela prisão, para sentir que não estava sozinha e descarregar a sua raiva. Assim o conta neste artigo dirigido ao preso político basco Igor González, a quem diz que também não está sozinho.

O meu pai gostava do boxe. Na sua juventude foi um boxeur amador com muito poucas lutas no seu activo e muitas horas de treino em frente a um saco de lona onde talvez, e sem o saber, descarregava a ira que não podia manifestar na rua, que naquela época pertencia unicamente a Franco. Domingo era dia de treino, de prática austera durante duas horas num armazém cinzento com lâmpadas despidas e amarelas e um improvisado quadrilátero em cujo centro balançava um saco de lona. Numa das esquinas, sentada numa cadeira em que os pés ainda não chegavam ao chão, eu lia histórias aos quadradinhos e esperava. Durante muito tempo, aquelas manhãs de domingo e a paixão do meu pai pelo boxe tornaram-se para mim uma agradável sessão de leitura, numa biblioteca atípica onde as aventuras da família Ulises, Carpanta, El Capitán Trueno ou as inventadas por Stevenson e Mark Twain adquiriam um sentido especial. Anos mais tarde, ao ler Julio Cortázar e descobrir nalguns dos seus contos o fascínio que este tinha pelo boxe, voltei a recuperar a estranha magia que para mim tinha existido entre a literatura e o boxe. Poucos eram os momentos em que levantava os olhos dos desenhos e olhava à minha volta, mas quando o fazia, a minha curiosidade centrava-se na rapidez, na segurança e na certeza com que, uma vez atrás doutra, o meu pai batia no gigante de lona. Então parecia-me que o fazia com força e hoje penso que também era coragem, alívio, raiva, necessidade, mesmo com essa dor aguda e angustiante que provoca a impotência de não poder fazer nada, de ter as mãos atadas e a palavra amordaçada.

Sempre considerei os dias de treino e de leitura naquele armazém húmido e um tanto desconjuntado da Parte Velha de Gasteiz como parte das lembranças mais ou menos queridas da minha infância. Nunca as analisei a fundo. No entanto, o tempo que passei na prisão obrigou-me a reorientar algumas das minhas experiências e a ir para lá das imagens calorosas que a memória me trazia. Nos primeiros dias, no escuro período de incomunicação e depois ao despertar cada dia no reduzido espaço de uma cela, sem outro horizonte que um muro e uma grade, recusei-me a aceitar a minha situação e senti a necessidade imperiosa de arremeter a soco contra tudo o que me rodeava e, em particular, contra o rosto impassível e esbranquiçado do juiz Garzón e a rotina implacável, malévola e carente de lógica com que, em alegre comandita com o ministro do Interior espanhol, instrui sumários e assina autos de prisão para homens e mulheres de Euskal Herria. Mas isso era impossível. À minha volta só tinha paredes, muros, e atingi-os até sentir dor, depois desanimei. Foi naquele instante de medo, raiva e impotência que recordei os treinos, o saco de lona, girando no quadrilátero, a testa suada do meu pai, o seu olhar e os socos, um atrás do outro, cada vez mais fortes... Em quem ou em que é que ele batia para lá do saco de areia e serradura? Talvez só a guerra, a guerra que lhe mostrou demasiado cedo o que era a morte, a dor e a miséria da repressão.

Dizer que todas as guerras são terríveis não é um tópico, é uma das poucas verdades absolutas que existem na vida. Dizer hoje que todas as prisões «democráticas» são aterradoras, centros de castigo com regulamentos pensados, calculados e criados para aniquilar a pessoa e a destruir, também é uma verdade absoluta. Por isso o Governo espanhol utiliza-as sistematicamente como uma arma eficaz para tentar o genocídio político que querem levar a cabo em Euskal Herria. As prisões espanholas não só arrebatam a liberdade, estão estruturadas para exercer uma vingança. E a vingança é sempre executada com frieza e crueldade. Uma companheira dizia-me: «isto é um submundo em que é preciso aprender a sobreviver». Ninguém está bem na prisão, e aprender a sobreviver nela, Igor, custa. Não é fácil. Tu sabe-lo melhor que eu. Não existem conselhos, não existem fórmulas, nem programas, nem métodos, nem sequer é uma questão de tempo. Só o apoio dos kides pode acender a luz onde se encontra o espaço suficiente para construir um quadrilátero e um saco de lona para socar, enquanto se chora, se grita, se odeia ou se luta.

Numa viagem ao Uruguai tive a sorte de conhecer o ex-dirigente do Movimento Tupamaro Mauricio Rosencof. Foi em 1986, apenas tinham passado alguns meses desde que recuperara a liberdade, depois de 12 anos encarcerado e torturado pela ditadura militar numa das famosas «latas», celas de aço, do Penal de Libertad. O seu testemunho deixou-me aterrada. Nunca tinha ouvido alguém descrever tanto horror, alguém que ainda podia escrever, sorrir e falar de futuro. Pensei nos presos bascos. Com uma ingenuidade imperdoável, disse a mim mesma que aquele pesadelo de tortura e isolamento era impensável em Euskal Herria. Hoje, quase 25 anos depois, a crueldade exercida sobre as presas e os presos políticos bascos superou a realidade do impensável e os socialistas ultrapassaram em muito os limites e os desmandos antidemocráticos dos militares uruguaios. Poderão envolver a sua política penitenciária e o seu genocídio político em celofane de mil cores, acompanhar os seus discursos com músicas celestiais e, nos meios de comunicação, criar uma realidade virtual de amor e paz, ao estilo Obama e com o ritmo trepidante de uma comédia de bons e maus. Por mais que o tentem, o seu plano fracassará. A pergunta «non da Jon?» continuará a percorrer Euskal Herria, tal como as denúncias de tortura, as detenções arbitrárias, a perseguição política, os julgamentos-farsa e as fotos dos mais de 760 homens e mulheres encarcerados nas prisões dos estados espanhol e francês. Cada um deles, com o seu nome e a sua história, com as suas penas e os seus anseios, com a sua fortaleza ou a sua tristeza, o seu ânimo ou o seu desânimo, fazem o caminho. Todos, Igor, deixam uma marca de veracidade na luta de Euskal Herria e fora dela. Todos vocês contribuem para ceifar a erva da mentira institucional.

Dir-me-ás que dentro e sem liberdade a esperança é mais dura, mais solitária, mais distante. Contudo, nem por isso deixa de existir. No dia 2 de Janeiro de 2010, dentro de uma semana, nas ruas de Bilbo milhares de pessoas andarão juntas numa marcha para avivar essa esperança e mostrar a realidade que outros querem ocultar. Para gritar solidariedade e denunciar a tortura e a ilegalidade de uma política prisional instaurada na vingança e na conveniência política. Para reclamar direitos e sobretudo para exigir liberdade. Embora todas as tardes, ao final do dia, ao fazer o balanço, uma pessoa tenha de olhar de frente para a solidão e buscar no seu interior a palavra ou o gesto capaz de abrir em cada manhã uma porta que a ajude a seguir em frente, ninguém está só, nem derrotado. Existirá sempre fora e dentro de cada qual um quadrilátero para subir e um saco de lona para socar não interessa como, nem com que força. Só é preciso procurá-lo.

Jamais pensei que a paixão do meu pai pelo boxe e aqueles treinos quase esquecidos fossem surgir como uma varinha mágica em momentos tão difíceis e que ainda me pudessem ajudar a escrever este artigo. Talvez seja um desses estranhos privilégios que a idade e a literatura conferem, e também o carinho. Não sei.

Só te queria dizer que neste momento não estás só. Nenhum, nenhuma de vós está. Não sabia o que te havia de contar para que nos ouvisses. De certeza que Julio Cortázar o teria contado melhor, eu só fiz o que pude. Agur Igor, até sábado em Bilbo.

Amparo LASHERAS
jornalista
Fonte: Gara