quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Como se constrói uma mentira


Várias reportagens na imprensa, novas publicações e uma homenagem «às vítimas do terrorismo» em Lasarte tentam manipular a história e atribuir à ETA a morte de uma menina de 22 meses, em 1960.

O dia 27 de Junho de 1960, há quase meio século, um grupo antifascista, nascido ao abrigo da Revolução Cubana, colocava seis bombas nas duas estações ferroviárias de Donostia, na de Atxuri, em Bilbau (dois dias depois), na do Norte, em Barcelona, na de Chamartín, em Madrid, e no comboio-correio de Madrid a Barcelona. De acordo com a nota divulgada pelo Ministério da Governação, o modus operandi em todas as ocasiões foi o mesmo: uma maleta abandonada com um mecanismo que provocava a ignição de uma bomba incendiária.

O grupo em questão chamava-se Directorio Revolucionario Ibérico de Liberación (DRIL), composto por uma amálgama de militantes comunistas, anarquistas e guevaristas, dirigidos aparentemente por militares portugueses exilados, entre os quais o general Humberto Delgado. Juntaram forças para denunciar as ditaduras de Franco e de Salazar. Humberto Delgado seria posteriormente sequestrado pela polícia secreta portuguesa e executado em Espanha com a cumplicidade da de Franco, em 1965.

As primeiras acções do DRIL tiveram lugar em Madrid, em Fevereiro de 1960, todas elas também da mesma maneira: uma maleta abandonada com explosivos. Os objectivos: a Câmara Municipal, a estátua de Velázquez no Museu do Prado, a sede da Falange... Numa delas, a bomba deflagrou enquanto era manipulada por Ramón Pérez Jurado, que morreu no momento. O seu companheiro Antonio Abad Donoso foi detido e mais dois jovens, Santiago Martínez e Justiniano Álvarez, conseguiram escapar, segundo a Polícia. Antonio Abad foi torturado, julgado e executado a 8 de Março desse ano.

A execução de Abad provocou uma forte contestação internacional contra o regime de Franco e a decisão do DRIL de dar uma resposta contundente à morte do seu militante. Assim prepararam as bombas nas estações mencionadas, dispondo as acções tal como o tinham feito em Madrid alguns meses antes. A bomba na Estação del Topo, em Donostia, matou uma menina que ainda não tinha dois anos, Begoña Urroz, natural de Lasarte.

Sete meses mais tarde, o DRIL abordaria aquela que viria a ser a sua maior acção, o sequestro de um barco português, o Santa Maria. Sob o comando do capitão Henrique Galvão, 24 militantes antifascistas tinham previsto chegar a Angola e estabelecer um foco de guerrilha que desestabilizasse a metrópole. Mas a tentativa fracassou e guerrilheiros e passageiros concluíram a odisseia no Brasil. Os Estados Unidos intervieram na conclusão do sequestro.

Até aqui, de forma muito sucinta, a história que teve como suporte livros da mítica editorial Ruedo Ibérico, documentários, o último de 2004, e inclusive um romance recente. O general Humberto Delgado conseguiu escrever e editar as suas memórias antes de ser assassinado. O DRIL, que desapareceu em 1964, foi tragado pela voragem da história e ficou enrolado num dos capítulos da oposição armada ao regime de Franco. Como o maquis comunista e anarquista, como o MIL, os GAC, o FRAP e mesmo a ETA.

A 19 de Setembro de 2000, contudo, Ernest Lluch publicava um artigo no El Correo segundo o qual a ETA teria sido a autora do atentado da Estação de Donostia em 1960, sendo falso, portanto, que as suas primeiras vítimas fossem o guarda civil José Pardines e o comissário Melitón Manzanas, ambos em 1968. Dizia Lluch nesse artigo que «Não encontrámos nem em Lazkao (Arquivo dos Beneditinos) nem em publicações que a ETA tenha atribuído a si mesma a colocação de bombas em 1960». Mas, sem dúvida, sentiu-se seduzido pela hipótese, que, de uma penada, converteu em certeza.

A intoxicação foi ganhando corpo como noutras ocasiões. Algumas delas foram muito sonantes, como quando diversos meios de comunicação atribuíram à ETA a autoria de assassinatos cometidos por grupos parapoliciais: Tomás Alba, Eduardo Moreno, Santi Brouard, Josean Cardosa, Josu Muguruza... Ou a bomba no jardim de infância Iturriaga, que provocou três mortos. Ou a explosão da caldeira na escola de Ortuella, ou o acidente do Monte Oiz, ou o incêndio do Hotel Corona de Aragón, em Saragoça... ou as 10 bombas que explodiram em Madrid no dia 11 de Março de 2004, causando 191 mortos e 1500 feridos.

Recentemente, um livro intitulado Vidas Rotas, juntamente com um artigo publicado no El País, voltaram a fazer eco da tese de Lluch. Manipulando de uma forma descarada. E digo-o porque me afecta na primeira pessoa. Diz-se textualmente no livro Vidas Rotas: «O Anuário do diário Egin correspondente a 1994 e a obra Euskal Herria y la libertad (Txalaparta, 1994), ambos ligados à denominada esquerda abertzale, publicaram um texto similar: tratava-se de uma cronologia de episódios relacionados com a ETA na qual se incluía a morte de Begoña Urroz, ainda que não se mencionasse expressamente que tivesse sido obra do grupo terrorista». Estas duas razões, juntamente com uma cronologia encontrada em 1992 no computador de Txelis, seriam os três grandes argumentos para modificar a história da explosão de Donostia de 1960.

A citada obra Euskal Herria y la libertad foi dirigida pelo recentemente falecido Luis Núñez, que, nesse ano organizou ainda o Anuário do Egin. Ambos os textos são similares. O de Euskal Herria y la libertad foi escrito por mim mesmo e dizia textualmente: «Entre 26 e 27 de Junho de 1960, cinco bombas explodiram nas estações de Quinto, Barcelona, Madrid e nas de Amara e Norte, em Donostia. A sabotagem, que causou uma vítima em Donostia, foi atribuída ao D.R.I.L. (Directorio Revolucionario Ibérico de Liberación). A polícia aproveitou a ocasião para espalhar a confusão entre a população (a vítima de Donostia era uma menina) e divulgar um comunicado em que afirmava que os autores eram 'elementos estrangeiros em cooperação com separatistas e comunistas espanhóis'. O PNV, por seu lado, responsabilizou a própria polícia franquista pela colocação das bombas, apresentando algumas 'provas' que assim o atestavam».

Alguém vê neste texto a relação que pretendem os autores do diário e do livro referidos? Por que é que, tão habituados, não há uma só citação policial nos artigos que defendem a paternidade da ETA nos atentados do DRIL? Era preciso dar um grande salto, ainda: em 2000, Lluch lançava a hipótese de a ETA ser autora do atentado de Donostia; em 2010 já atribuem à ETA também os de Madrid, Saragoça e Barcelona.

A tentativa de descarrilamento do comboio de ex-combatentes franquistas à entrada de Donostia, um ano mais tarde, a 18 de Julho de 1961, constituiu a primeira acção da ETA. E, como não tinham explosivos, deformaram a via. Nem sequer houve feridos. No tempo das explosões do DRIL os activistas da ETA eram dois: Juan José Etxabe e Jon Ozaeta, autores das inscrições pintadas nesse Verão de 1960 em Donostia. Foram detidos em Setembro do mesmo ano. O Tribunal Especial de Enrique Eymar ou o Tribunal de Ordem Pública criado em 1963 jamais acusaram qualquer basco que fosse pelas bombas de Junho de 1960.

A primeira bomba que a ETA colocou, de acordo com a documentação depositada no Arquivo dos Beneditinos de Lazkao, que Lluch também consultou, mas não os revisionistas de 2010, foi na sede do Movimiento Nacional de Gasteiz, a 15 de Fevereiro de 1964, quase quatro anos depois dos acontecimentos comentados. Não rebentou. No dia seguinte, pelo contrário, uma bomba da ETA explodiu na sede do Governo Civil de Iruñea. Foi a primeira.

Hoje, as seis bombas de 1960 provocam uma história perversa. Por trás do falecimento de Begoña Urroz há uma vida que não pôde ser, que não chegou a desenvolver-se, e isso é um drama familiar que agora volta instigado por interesses que em nada têm a ver com o afloramento da verdade. A ETA causou centenas de vítimas, algumas civis, crianças também. Mas não dessa vez.

O trajecto da verdade desta tragédia é curto. Os arquivos militares, jurisdição da época, podem levantar o segredo dos atentados do DRIL em Junho deste ano. Terão passado 50 anos, o exigido por lei para consultar publicamente as diligências e investigações. Dois arquivos militares, um em Ferrol e outro em Madrid, guardam a verdade. Espero que, como noutras ocasiões, uma mão oculta não os tenha feito desaparecer, para não prolongar o desassossego duma família.

Iñaki EGAÑA
historiador
Fonte: izaronews via kaosenlared.net