segunda-feira, 12 de abril de 2010

O paradoxo de Garzón


Os abaixo assinados vêem-se na obrigação de proceder a certos esclarecimentos, perante as iniciativas levadas a cabo por associações de direitos humanos e intelectuais de diversas áreas geográficas para apoiar o juiz da Audiência Nacional Baltasar Garzón, imputado por delitos de prevaricação pelos processos, que ele dirige, de desaparecimento de pessoas durante a guerra civil e o franquismo.

Antes de mais, temos de reconhecer que nos encontramos num terreno terrivelmente resvaladiço. Terreno no qual se lançam acusações contra os seus acusadores que também poderiam ser lançadas ao agora acusado, e solidariedades e palavras de apoio para com este que, do nosso humilde ponto de vista, deveriam ser matizadas.

Com efeito, levantámos a voz de forma veemente contra a intromissão dos tribunais de justiça para bloquear iniciativas que possuem um evidente cariz político, contra a morte de debates públicos vivos e necessários pela acção dos tribunais. Neste caso concreto, a iniciativa a favor das vítimas do levantamento fascista, não a circunscrevemos ao impulso do juiz Garzón, mas consideramos que responde à acção anónima, decidida e consequente de centenas de associações e indivíduos que lutaram denodadamente pelo conhecimento e reconhecimento da verdade e da justiça. São eles que vêem o caminho barrado perante os tribunais de justiça.

Por outro lado, não podemos senão realçar que o repúdio ante a intervenção inaceitável da Justiça no livre debate político é imputável também ao próprio Sr. Garzón. Paradoxalmente, é agora vítima de uma politização da justiça que ele magistralmente desenhou e impulsionou. A sua alusão à ambiguidade das acusações que agora contra ele são lançadas, o «desvio patente dos factos objecto desta causa» que denuncia no seu recurso, ou a instrução «enviesada» de que se considera vítima, «que só se pode explicar com base numa ideia preconcebida deste assunto, que o impede de analisar com objectividade os factos que contempla» não é senão o remédio que ele próprio criou, e que se vê agora ele mesmo obrigado a provar. E que agora denuncia como amargo.

Mas é que, para além do mais, várias organizações oferecem solidariedade a Garzón, com o apelativo de «defensor de direitos humanos», sem verificar o seu currículo a esse respeito.

Não é inútil recordar que realiza a sua actividade jurisdicional a partir da herança mais envenenada recebida da Justiça franquista, a Audiência Nacional, substituta do TOP - Tribunal de Orden Público. Mais ainda, sabendo perfeitamente que as jurisdições especiais são a essência dos regimes totalitários. A natureza arbitrária deste tribunal foi oportunamente assinalada pelo próprio Relator para os Direitos Humanos na Luta Antiterrorista, Martin Scheinin.

Não é despiciendo referir que na sua actuação promoveu casos contra meios de comunicação, associações populares, partidos políticos e inclusive defensores de direitos humanos, que devem ser qualificados como uma agressão directa à liberdade de expressão e ao direito de livre associação pacífica. O próprio Comité de Direitos Humanos manifestou recentemente a sua preocupação a este respeito.

Não é gratuito trazer para estas linhas que Garzón, na sua actividade diária à frente do Tribunal especial que dirige, dá ordem de detenção a pessoas acusadas de terrorismo sob o regime de incomunicação, verdadeiro espaço de impunidade em que se verificam torturas brutais. Organismos como o Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa - CPT -, o Comité contra a Tortura - CAT - ou diferentes Relatores contra a Tortura do sistema das Nações Unidas reclamaram reiteradamente a abolição desta modalidade de detenção, cuja aplicação leva a rubrica deste magistrado.

Não é trivial recordar que o juiz, agora elevado à condição de defensor de direitos humanos por várias associações, se mostrou impassível ante as denúncias de tortura que os detidos sob a sua alçada lhe narravam. Entre outros, o cidadão basco Josu Arkauz, cujo testemunho de tortura foi considerado pelo CPT «detalhado e coerente», o qual censurava ao Tribunal n.º 5 não ter tomado medidas «repetidamente recomendadas pelo CPT» para a evitar. Esta é a linha argumentativa seguida também no caso dos detidos na Catalunya na chamada «Operación Garzón» durante os Jogos Olímpicos de Barcelona, sobre a qual o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sentenciou a 2 de Novembro de 2004 que as investigações de tortura não tinham sido «suficientemente profundas e efectivas para cumprir com as exigências dos tratados internacionais».

Conhecemos, pois, a atitude de Garzón no âmbito internacional, assim como a conhecemos no doméstico. Sabemos do seu interesse por aparecer como juiz progressista, para assim poder assumir uma atitude repressiva sem comparação, a partir dos gabinetes do tribunal de excepção da Audiência Nacional. Assistimos em primeira mão à sua passividade face à tortura nas suas tarefas diárias, assim como pudemos constatar que a sua actividade no âmbito internacional na área dos direitos humanos não constitui mais que uma ligeiro camada de verniz, sem que as suas acções em nenhum caso tenham deixado de ter um carácter testemunhal.

Verificámos, por fim, os excessos do seu tribunal, que denunciámos da mesma forma que denunciamos os excessos que outros tribunais comentem agora com o juiz Garzón. A aceitação do presente caso por se querer investigar os crimes contra a Humanidade cometidos durante o período franquista é atentatória contra a declaração de imprescritibilidade dos crimes contra a Humanidade pelo Comité de Direitos Humanos da ONU e contra o senso comum.

Com base nessa legitimidade, não podemos senão opormo-nos à designação deste juiz como defensor de direitos humanos, quando a sua actuação foi, enquanto lhe era favorável aos seus interesses, idêntica à que agora denuncia.

Jorge del CURA (*)
Centro de Documentación contra la Tortura

(*) Com Jorge del Cura, assinam este artigo Ramom López-Suevos Fernándes e Elvira Souto (Esculca-Observatório para a Defensa dos Direitos e Liberdades), Ramón Piqué (Associació Memòria Contra la Tortura), Eva Pous (Alerta Solidària), Montserrat Munté (Acció dels Cristians per l'Abolició de la Tortura), Maite de Miguel e Eduardo Rivero (Independientes), Ane Ituiño e Lorea Bilbao (TAT-Torturaren Aurkako Taldea), Julen Arzuaga, Iratxe Urizar e Edurne Iriondo (Euskal Herriko Giza Eskubideen Behatokia), Andoni Hernández (Eskubideak Euskal Abokatuen Elkartea), José Ramón Pérez (Salhaketa -Araba), Carlos Hernández (Salhaketa -Bizkaia), Iñaki Rivera Beiras (Universidad de Barcelona), Gemma Ubasart i Gonzàlez (Universidad Autónoma de Barcelona-UAB), Amalia Alejandre (advogada, Madrid), José Manuel Hernández (advogado, CAES), Luis Ocaña Escolar e Emma Valiente (Grupo 17 de Marzo, Sociedad Andaluza de juristas para la defensa de los Derechos Humanos).

Fonte: boltxe.info