quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Desconstruindo a Lei dos Partidos


Este texto Manuel M. Navarrete é premonitório, pois foi escrito antes de o governo de Zapatero e o sempre à mão juiz Garçón lançarem a vaga de terrorismo de Estado em curso no País Basco: prisão de pessoas por delito de opinião, considerando-as criminosas por simplesmente defenderem a independência do seu país sem recurso a actos terroristas.


Manuel M. Navarrete* - 20.10.09

Primeiro levaram um por ser do Batasuna, mas eu não disse nada porque não era do Batasuna.


“Não posso aceitar a frustração definitiva de votar contra as condições formais que garantem umas eleições livres. (…) Se pudesse votar Batasuna (ou ANV o no PCTV)não o faria, mas como não posso votar Batasuna vou abster-me”.
(Carlos Fernández Liria y Santiago Alba Rico)


Não vou falar da ETA. Vou falar da esquerda abertzale. Não faltará quem diga para com os seus botões que a ETA e a esquerda abertzale são a mesma coisa. A melhor prova de que isso é mentira é a Lei dos Partidos. Não foi preciso modificar o Código Penal para ilegalizar a ETA, já que as suas acções eram em si mesmas ilegais segundo o ordenamento jurídico então vigente. No entanto, teve que se promulgar uma Lei dos Partidos especificamente para ilegalizar o Batasuna, porque não bastava o Código Penal para o conseguir.

Este raciocínio simples lança de modo irrefutável por terra uma amalgama tão frequente como grave. Frequente por ser já um tópico quotidiano de políticos, juízes e meios de comunicação. Grave porque só pôde conseguir-se baseando uma execução comum de uns fins, na realidade partilhados, e tornando óbvios os meios, que supostamente justificam tantas mãos brancas e que sõ – esses sim – ilegais.

Outro atributo da Lei dos Partidos, atributo conscienciosamente ocultado pela «liberdade de expressão» espanhola (liberdade de expressão para quem tenha uns milhões de euros e possa fazer um jornal), é a de gerar uma rejeição a nível internacional. O Relator Especial da ONU, Martin Sheinin, escreveu que o preocupava «a amplitude da formulação das disposições da Lei dos Partidos», já que «poderão interpretar-se de forma a incluir qualquer partido político que por meios pacíficos trate de objectivos políticos semelhantes aos que perseguem os grupos terroristas». A Amnistia Internacional, por seu lado, mostrou a sua preocupação pela «ambiguidade e a imprecisão de alguns artigos», através dos quais se poderão «empreender processos de ilegalização dos partidos políticos que propugnem a mudança de princípios constitucionais ou leis de forma pacífica», insistindo que esta lei poderá «levar à ilegalização de partidos que partilhem com os grupos armados objectivos como a independência, mas não advoguem nem usem a violência». O Colégio dos Advogados de Barcelona, por seu lado, foi mais explicito ainda ao falar dos «efeitos extensivos da aplicação do conceito de terrorismo sobre a dissidência política» a «normalização de uma cultura jurídica da emergência ou excepcionalidade» e das «responsabilidades penais difusas e não colectivas», concluindo que «quando os objectivos, e não os meios, são o que se penaliza – o que significa converter fatalmente o independentismo basco em terrorista – consolida-se um direito penalde autor que persegue ideologias em vez de factos». Falta dizer que nem a ONU, nem a Amnistia, nem o Colégio de Advogados são entidades demasiado suspeitas de marxismo, radicalismo ou independentismo.

No entanto, o Tribunal de Estrasburgo, numa decisão mais política que jurídica, acaba de avalizar esta lei.

Escrevo este artigo para declarar que, com semelhante jurisprudência, a Europa caminha para o fascismo. Tentarei fundamentar esta afirmação.

Em primeiro lugar a Lei dos Partidos fulmina o princípio da responsabilidade individual. Os colectivos não delinqúem : unicamente delinqúem pessoas singulares.Por exemplo, não se pode ilegalizar o Real Madrid porque um «ultrasur» cometeu um assassínio. De facto há membro do PSOE e do PP condenados por crimes sérios, o que não afecta nada o funcionamento destes agrupamentos no Parlamento.

Além disso, estão a ilegalizar ideias. Se és um independentista basco e tens posições anticapitalistas, não tens direito a criar uma organização política nem a votar. A tua única opção é tornares-te um nacionalista da direita e filiares-te no PNV. Mesmo que condenes a ETA não serias legalizado, segundo declarou há semanas Pérez Rubalcaba, o ministro do Interior espanhol. De facto, Iniciativa Internacionalista afirmou publicamente que rejeitava «o uso da violência em condições democráticas», mas mesmo assim o Supremo Tribunal tentou ilegalizá-la. Quando é o próprio Tribunal Constitucional quem corrige a decisão do Supremo Tribunal, cabe perguntar se o Tribunal Constitucional é agora um tribunal pró etarra ou se, melhor ainda, se a decisão tomada pelo Supremo foi um disparate.

Apesar de tudo, vale a pena determo-nos no tema da «condenação». É certo: o Batasuna não «condenou» os atentados da ETA, nem tão pouco alguma vez se pronunciou a aprová-los. Este facto pode ser moralmente julgável, mas juridicamente é totalmente irrelevante, visto que não há nenhuma lei que obrigue a isso. Ninguém pode ser julgado pelo que não disse. Não há apenas – em teoria – liberdade de silêncio mas até, no plano parlamentar, a abstenção é um direito mais do suposto «exercício democrático».

Ademais, a não condenação é perfeitamente lógica. O que se está à procura é de uma mesa de negociação para acabar, finalmente, com o conflito. Ocorre a alguém que durante as negociações entre os britânicos e o Sinn Fein tivesse que exigir-se Gerry Adams uma condenação das actividades do IRA? Este disparate só poderia surgir na nefasta mentalidade espanhola, ancorada no guerracivilismo. Com semelhante política jamais teria chegado a paz a uma parte da Irlanda. Porque a paz não é o mesmo que pacificação ou o esmagamento policial ou militar do outro lado. A paz é uma estrutura, o efeito de uma composição de forças que entram em equilíbrio. Jamais pode haver uma mesa de negociação chamando assassinos aos virtuais interlocutores, nem exigindo-lhes que ajoelhem. Há que partir de uma posição de respeito se alguma vez se quiser conseguir a resolução de um conflito.

Por outro lado, há que recordá-lo, o PP negou-se a condenar os assassínios de Franco. O PSOE, por seu lado, não é que não tenha condenado os assassínios do grupo terrorista GAL, mas não condenou que o dito grupo foi organizado e financiado por ele, nos tempos de Filipe González. Isto para não falar da tortura nas prisões e esquadras da polícia, ou da violência das tropas ocupantes em países como o Afeganistão ou o Líbano. Exigem-nos uma condenação ritual, maniqueísta e obrigatória só de um lado, mas por que temos de condenar a violência dissidente quando ninguémcondena a violência institucional, infinitamente mais grave?

Retomando o fio da argumentação, e como explicávamos, princípios como a responsabilidade penal individual, a liberdade ideológica, a não retroactividade das leis, a não criação ad hoc de leis com fins políticos… são sacrificados por um furor persecutório que está implícito nesta legislação aberrante.

Mas o pior desta lei é que o juiz Garçon deu-lhe uma enorme projecção eleitoral e parlamentar. Ainda que esta lei se circunscreva formalmente à limitação do direito de associação (artº 22º da Constituição Espanhola), materialmente o que se está a limitar é o direito de participação política (artº 23º). Foi isto que se evidenciou quando se anularam as candidaturas promovidas por agrupamentos de eleitores, ou quando se dissolveu o grupo parlamentar Socialista Abertzale. E quer os agrupamentos de eleitores como o grupo parlamentar são (objectivamente) expressão do direito de participação política, e não do direito de associação. Só existem duas hipóteses para privar alguém do directo de participação, e sempre a pessoas individuais: terem tido uma condenação por determinados delitos e a incapacidade, decretada judicialmente.

Indubitavelmente, o objectivo inicial desta lei era a liquidação eleitoral de uma chata minoria de 15% da sociedade basca que se tornou notada em todos os processos eleitorais realizados desde 1979. O problema é que a Lei dos Partidos estica-se como pastilha elástica, com a famosa teoria da «envolvência». O juiz Marlaska ilegalizou organizações com sentenças onde se fazem afirmações como a de suspendia «organismos públicos, fundações, associações, sociedades, e organismos semelhantes ao Batasuna». Com sentenças assim, a responsabilidade penal é tão difusa que quem quer que seja pode já ser terrorista, sem o saber e sem nunca ter empunhado uma arma. O que é um organismo semelhante ao Batasuna? Visto que o Batasuna é um partido político, o PSOE é um organismo semelhante ao Batasuna? Ou talvez por semelhante o juiz Marlaska entenda «politicamente afim»? Nesse caso, enquanto marxistas e partidários da autodeterminação, poderiam perfeitamente ilegalizar organizações como a Corriente Roja ou o SAT. Não foi em vão que um dos qrgumentos da sentença de ilegalização de Iniciativa Internacionalista era «o extenso curriculum políticode Alfonso Sastre», já que esta lista incluía apenas um basco na suas candidaturas…

Uma última reflexão. Foi extraordinariamente significativa a actitude do cabeça de lista da Esquerda Unida (IU) às eleições Europeias, Willi Meyer, quando disse que se os tribunais ilegalizavam a lista da Iniciativa Internacionalista ele estava de acordo porque estamos num «Estado de direito» (se a IU está contra a Lei dos Partidos, como pode estar a favor do tribunal que a aplique?). Isto, para não falar da atitude do coordenador andaluz da IU, Diego Valderas, que ameaçou a CUT de expulsão por ter avalizado a Iniciativa internacionalista para que pudesse apresentar-se às eleições. Há pouco li também as palavras do Secretário-Geral do PCE, Paco Frutos, no programa El circulo de primera hora: «Criticaram-nos muito pela nossa abstenção na votação da Lei dos Partidos. Se disséssemos que não, confundiam-nos com o Batasuna (HB) e o seu envolvimento (…) Vimos que esta norma estava feita ao contrário. Feita unicamente para ilegalizar o HB. Por isso nos abstivemos». Estive às voltas com as palabras, até que me dei conta de uma coisa: Paço Frutos não se justfica por não ter votado contra a ilegalização, mas por não ter votado a favor.

Talvez a solidariedade para com outras organizações anticapitalistas não funcione em mentes tão mesquinhas, mas pelo menos deveria criar a necessidade de travar o fascismo. De contrário, talvez um dia encontremos alguém a dizer: primeiro levaram por ser do Batasuna, mas eu não disse nada porque não era do Batasuna. Depois levaram por ser do PCE (r), mas não disse nada porque também não era do PCE (r). Mais tarde levaram por ser da Esquerda Castelhana, mas igualmente me calei porque não era da Esquerda Castelhana. Por último levaram por ser da Iniciativa Internacionalista, mas uma vez mais me calei, porque não era da Iniciativa Internacionalista. Quando foram por mim já não havia ninguém para protestar.


* Publicista

Este texto foi publicado em http://www.rebelion.org/

Tradução de José Paulo Gascão no Diario.info