terça-feira, 20 de outubro de 2009

O papel que o Ministério do Interior não deu a conhecer


Nos últimos dias os meios de comunicação escolheram a parte do auto de Garzón que lhes interessava ou que lhes calhou na divisão e puseram-lhe a sua assinatura. E, claro, sempre com a perspectiva que mais interessava ao Ministério do Interior.

Entre os muitos papéis de variada proveniência que o Ministério do Interior tem em seu poder desde a última operação, chama a atenção o facto de que não tenha passado cá para fora o mais actual e o que tem valor oficial: o que as bases da esquerda abertzale vão debater nas próximas semanas. Acaso? Impossível.

Um comentarista incisivo dizia ontem de manhã na Herri Irratia que, se o auto de Garzón tivesse sido uma reportagem sua, teria tido muitíssimas dificuldades para a ver publicada nalgum lugar. Percebeu-se perfeitamente a sua intenção em deixar claro que a peça do tribunal de instrução número 5 da Audiência Nacional é um pastiche sem sentido. Mas a realidade mediática é bastante diferente da desejável e foram muitos os jornais que - provavelmente porque o assinava o juiz e não o nosso perspicaz interlocutor - acabaram por comprar o «corta e cola» elaborado pelo Ministério do Interior; cada qual escolheu a parte de que mais gostava (ou que lhe calhou na divisão) e ainda lhe pôs a sua assinatura.

E não deixa de chamar a atenção que todos os meios de comunicação, no momento de decidir que enfoque dar à sua parte do saque, tenham optado pelo que mais iria beneficiar as teses de Alfredo Pérez Rubalcaba. Por exemplo, quem diz que «la banda planeaba un 'Lizarra 2' con las siglas de EA y un PNV 'marginado'» insiste na ideia de que era a ETA que controlava toda a operação, mas passa ao de leve sobre um elemento-chave: a queixa sobre as eleições europeias que o auto de Garzón atribui à organização armada, até chegar a perguntar: «onde se tomam as decisões?». Se Arnaldo Otegi e Rafa Díez foram os que mais se destacaram na defesa da opção da Iniciativa Internacionalista, de que a ETA não gostava, segundo a Audiência Nacional, como podem ser encarcerados com a acusação de estarem sob a sua direcção? Há alguns anos, o conhecimento desse documento haveria de dar azo a títulos como: «La izquierda abertzale, cerca de la ruptura», «Batasuna desoyó a ETA», «ETA ya no manda»... Como mudam os tempos! Agora até buscar tréguas é uma acusação.

Chama também a atenção o boato disseminado, desde o primeiro minuto das detenções, de que Arnaldo Otegi se teria encontrado com membros da ETA. No auto de Garzón, as supostas viagens de Arnaldo Otegi perdiam muita força, porque acontece que uma vez tinha ido ver um ex-preso e noutra, segundo dizem, tinha chegado ao mesmo sítio para se perder depois durante umas horas.

Apesar de contar com tão exíguos ingredientes, o Abc chegou a noticiar no domingo que «Otegi se vio con ETA en Francia días antes de los atentados de Burgos y Palma», embora no conteúdo noticioso a realidade lhes escapasse como areia entre os dedos.

Se as reuniões de Arnaldo Otegi com dirigentes da ETA fossem assim como se contaram, consegue-se imaginar que tivesse escapado ao controlo policial? Será que alguém pensa que o Ministério do Interior não teria tentado deter por todos os meios todos os participantes na reunião, com o estrondo propagandístico que isso representaria?

Talvez pelo facto de tais detenções não terem ocorrido nem o tema do contacto directo ter tido maior alcance na imprensa, se possa entender o interesse do Ministério do Interior em ligar os ontem detidos numa operação policial no Estado francês (que curiosa essa coisa de as detenções serem feitas pela Polícia francesa e as explicações serem dadas pelo chefe da espanhola) com a alegada transmissão de ordens à esquerda abertzale.

Em todo o caso, estes dias serviram também para ver que nem só o Governo espanhol parece interessado em emperrar o cenário político basco. Os diários do Grupo Noticias converteram em notícia de primeira página as reflexões de uma chamada «iniciativa Gakoa», que, segundo os periódicos jeltzales, agrupa «un numeroso grupo de reconocidos militantes de la denominada izquierda abertzale». Não se diz quando, nem em que âmbitos circularam esses documentos tão críticos. O que se pode realmente garantir é que nem esses supostos papéis, nem outros de signo antagónico, são o cerne do debate que vai ter lugar nas bases do independentismo.

Porque há vezes em que a notícia não é só o que se filtra, mas também os papéis que se ocultam. Poucas dúvidas existem de que o documento que o Gara publica hoje há-de estar nas mãos do Ministério do Interior espanhol. De facto, por ser o mais actual e o que tem o carimbo oficial, é sem dúvida o mais interessante para qualquer meio de comunicação. Então, por que é que a equipa da Castellana 5 não o distribuiu? Provavelmente porque acaba com todas as restantes teorias e elucubrações. Porque, embora não contenha as frases que alguns virão dizer que faltam, a sua intenção fica suficientemente definida.

O documento está já a ser distribuído às bases da esquerda abertzale. A operação de Rubalcaba não conseguiu abortar a iniciativa. A partir daqui, está nas mãos da militância independentista debater os conteúdos propostos pela sua direcção política, emendá-los, rejeitá-los ou aprová-los. Mas a partir de agora já ninguém (político ou jornalista) poderá dizer que não sabe «en qué andaban» os encarcerados na operação de há uma semana. Andavam nisto.

Parafraseando Jesús Eguiguren, é verdade que não é «nada de definitivo», já que falta o debate final. Mas sem receio de nos enganarmos, pode-se dizer que é «algo importante».

Iñaki IRIONDO
Fonte: Gara

Ver também: «O Batasuna põe em debate entre as suas bases uma nova estratégia para concretizar a "mudança de ciclo"», de Ramón SOLA e Iñaki IRIONDO, em Gara