domingo, 28 de setembro de 2008

Quando Setembro chegar, será tudo um cambalacho


Termina um Setembro sem poetas que traz à memória de Lasheras os fins de Verão na sua juventude, presságio de tédio, de rotina cinzenta. Não obstante, do mesmo modo que então não tardavam a assomar “a esperança e a certeza de encontrar e possuir um futuro diferente e mais livre”, a dura realidade política, com esforço, pode mudar.

Dizem os poetas que Setembro tem a cor do entardecer, do sol adormecido e do ar triste que traz as primeiras horas do Outono, um tempo, como escreveu Neruda, onde os corpos dos amantes “cresceram até ao limite do mundo”. Seja o que for e longe de todas as sensações poéticas que pode provocar a circunstância de ser o último mês do Verão, não há dúvida de que, como todas as questões existenciais, Setembro esconde também uma realidade obscura que aflora imprevisivelmente à vida, induzida quase sempre por outras atitudes humanas, que desde logo nada tem a ver com a poesia.

Na sua passagem pela história, Setembro marcou a vermelho dias de tragédia e dor, fortalecidos na memória colectiva de Euskal Herria com o respeito e a lembrança de um combate nunca acabado. Enquanto escrevo estas linhas, no dia anterior à sua publicação, parece-me incontornável evocar a madrugada de 27 de Setembro de 1975, na qual, por ordem das leis franquistas, foram assassinados os militantes da ETA Txiki e Otaegi e três membros do FRAP. Essa data, tal como o 11 de Setembro de 1973, no Chile, faz parte de um Setembro sem poetas, de uma escuridão impossível de esquecer, embora hoje existam leis que pretendam criminalizar o seu nome, e o pó propagandístico do ataque islamista ao World Trade Center, em Nova Iorque, tente açambarcar a memória colectiva e deixar abandonados em nota de rodapé os crimes de um assassino como o general Pinochet.

Naquela época de opressão, de festas em casa e festas populares a preto e branco, Bobby Darin, um actor e cantor nova-iorquino, popularizou uma canção, pertencente à banda sonora de um filme realizado por Robert Mulligan, que dizia: “quando Setembro chegar, tudo será maravilhoso...”. A frase repetia-se no refrão, insistente, e incluía-se na mensagem do sonho americano, enviado de forma subliminar aos jovens do Estado espanhol, que, felizmente, começavam a sentir tédio de tanta sensaboria. Mas, como em todos os sonhos pré-fabricados, a realidade não tardava a impor os seus critérios, e era fácil perceber que em Setembro terminava algo mais que o Verão, começava o tédio, as aulas de Física e a culpa por ter beijado às escondidas alguém que já tínhamos esquecido.

Alguns pensarão que tudo isto soa a relatos fastidiosos de juventude mas, às vezes, quando se quer pôr ordem nas ideias e analisar a realidade que temos por diante, as vivências entrecruzam-se e aparecem sensações que se criam perdidas e que de alguma forma ajudam a explicar o que se pensa e se sente ante o que, para o bem ou para o mal, nos calha viver.

Apesar do canto repetitivo e estival do lehendakari Ibarretxe sobre a chegada de uma consulta maravilhosa, capaz de transformar o presente e o futuro de Euskal Herria, o certo é que este Setembro de 2008 chegou como sempre, sem poetas e sem surpresas, com a agenda prevista para um estado de excepção imposto pelo Governo do PSOE e que nada tem que invejar aos que Franco decretava quando Euskal Herria levantava a voz e fazia valer os seus direitos. As sentenças políticas contra os membros do Movimento Pró-Amnistia, as ilegalizações do EHAK e da ANV, as detenções dos dirigentes do Batasuna em Ipar Euskal Herria, a entrega de detidos pela polícia francesa à espanhola e as proibições sistemáticas de manifestações, numa violação constante dos direitos fundamentais, ratificam, confirmam e evidenciam uma vez mais esse estado de excepção, encoberto deliberadamente com a verborreia e a manipulação retórica e informativa dos que se chamam a si mesmos democratas. Sabemos tudo isto porque é a realidade que desde há algum tempo a esquerda abertzale vive e sofre, dia após dia e minuto após minuto, à vista da qual as canções ao estilo de «Viva a Gente», do lehendakari e dos seus companheiros de governo sobre a consulta que solucionaria o conflito político, se diluem perante a Constituição espanhola como “açúcar na água”, um símile que neste caso vem mesmo a jeito, para que os dirigentes do PNV o retirem do seu discurso contra a esquerda abertzale e o apliquem a si mesmos.

Lembro-me de que o pior de tudo, nessa descoberta de que em Setembro nada podia ser maravilhoso, era perceber a pontada da desilusão que envolvia o futuro numa rotina cinzenta e traçava um caminho interminável e com direcção única. No entanto, não durava muito. A esperança e também a certeza de encontrar e possuir um futuro diferente e mais livre que o que Franco nos pretendia impor dissipavam as nuvens escuras do medo e do desencanto, e abriam os horizontes para outras expectativas de vida, mais genuínas. À negação, à rotina e à opressão quotidiana opunham-se os sonhos, e desde o silêncio convocava-se e desafiava-se o futuro. Nesses tempos, aprendi que a derrota começa quando se fecha o coração e o pensamento à confiança, e se caminha olhando só para a linha contínua.

Hoje, neste Setembro de 2008, a realidade política oferece-nos, além da exclusão e da repressão para a esquerda abertzale, um cenário complicado e convulso em que a sociedade de Euskal Herria exige soluções que garantam o seu futuro, as suas liberdades e os seus direitos. Ao observar e analisar essa realidade, é óbvio que o que falta, precisamente, na oferta de quem tomou as rédeas da política é a resposta a essa exigência. Uma proposta que articule a solução definitiva para que este povo viva em paz e numa democracia plena, onde todas as ideias possam ser defendidas. Neste momento, sobre a mesa apenas existem dois posicionamentos. A continuidade de um regime estatutário emoldurado pela Constituição espanhola, liderado pelo PSOE e o PP, com a colaboração e o apoio do PNV e dos seus próximos (EA, IU, Aralar e Nafarroa Bai), para o qual programaram e acordaram o aniquilamento das ideias independentistas da esquerda abertzale através de uma repressão selvagem, e a proposta soberanista de um novo marco democrático que esta formação tornou pública no processo anterior a uma possível negociação. A primeira carece de soluções e garante a continuidade do conflito, e com a segunda abrem-se as portas a uma solução definitiva e articula-se uma metodologia para a negociação defendendo o direito incontornável à autodeterminação, assumido pela maioria da sociedade de Euskal Herria.

Perante esta conjuntura, a responsabilidade política da esquerda abertzale é grande e árdua em trabalho. Exige um empenho e um esforço não só na denúncia das barbaridades da repressão, mas também no trabalho político para levar por diante a única proposta política existente capaz de empreender um caminho soberanista. Embora difícil, é hora de levantar o olhar da linha contínua da dor que nos atormenta e, face à deserção na defesa dos direitos de Euskal Herria por parte dos partidos que se dizem nacionalistas (PNV, EA, Aralar e NB), assumir a iniciativa política que nos cabe. Devemos estar convencidos de que quem tem sonhos, vive; quem tem soluções pode resolver os conflitos. Essa certeza é em si mesma uma garantia para enfrentar os desafios do novo ciclo político que se abre a partir deste Setembro mais escuro que maravilhoso.

Um amigo escrevia-me há dias, fazendo referência à esquerda abertzale: “às vezes dá até a sensação de que somos capazes de dançar um tango à beira do precipício”. Tem razão. Eu diria que já o dançámos muitas vezes e nunca caímos nem trocámos o passo, apesar de que o tango que nos calhou seja «Cambalacho», esse que diz: “Hoje parece que é a mesma coisa / ser honesto ou traidor, / século vinte, cambalacho / problemático e febril... / O que não chora não mama / e o que não se afana é um otário”.

Amparo LASHERAS
jornalista

Fonte: Gara