segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Tortura à etrusca

Com a mesma lógica das torturas que há milhares de anos os etruscos infligiam aos seus prisioneiros actua o Estado espanhol, vinculando a sorte do detido à do detido anterior. Na opinião de Julen Arzuaga, esse Estado não tem vontade de adoptar medidas contra a prática da tortura. Justifica-as acendendo o alerta antiterrorista e, se permite espaços para debater medidas de prevenção, a sua prática é “comportar-se à etrusca”.

Dizem que os etruscos, há 3000 anos, utilizavam um método de tortura que consistia em atar ao prisioneiro o corpo de outro prisioneiro já morto, de tal modo que, ao decompor-se este corpo, apodrecia também o daquele, ainda vivo. Supõe-se a dor física das chagas infectadas e o sofrimento psicológico que acarretaria esse método de tormento, que enlaça indefectivelmente o prisioneiro à sorte sofrida pelo seu companheiro.

Com as devidas distâncias, a lógica da tortura etrusca mantém-se, vinculando-se a sorte de um detido à do detido anterior. Assim se opera no sistema actual de detenções em cadeia, de tal forma que a prisão de uma pessoa implicará novas detenções, submetendo o futuro dos segundos ao estado a que, sob tortura, se levou o primeiro e às declarações que este possa ter vertido. Nos manuais policiais fala-se da “polícia científica”, aquela que conduz as suas investigações por pacientes métodos técnicos de investigação, detecção e seguimento dos supostos autores de factos delitivos. Pelo contrário, a forma de actuar das polícias espanholas consiste em arrancar testemunhos sob tortura para a auto-acusação de quem a sofre e para a acusação de mais pessoas, dando continuidade a essa macabra cadeia de detenções. Enquanto se escrevem estas linhas, temos um exemplo mais deste sistema, no qual vale atropelar com um “patrol” policial a quem será detido – sempre sob a presunção de inocência –, para depois, sequestrado e em paradeiro desconhecido, se lhe poder arrancar dados sobre as suas amizades, companheiros de militância, etc., por meio da aplicação desses métodos – o saco, eléctrodos, socos, vexações sexuais, ameaças – que o leitor conhece de sobra.

Esta forma de actuar é a correcta para o bom andamento da luta antiterrorista, objectivo supremo que não permite reparar nos meios. Seja qual for o bem protegido que provoca a acção policial – a vida das pessoas, um contentor do lixo ou evitar uma campanha crítica contra o TGV –, o tormento está justificado. A apelação à ambígua e etérea mas sempre prioritária “luta antiterrorista” justifica os métodos anteriormente mencionados e, mais ainda, não permite oposição, já que com a crítica se entorpece esse objectivo final.

A luta contra a tortura evoluiu. Desde uma primeira necessidade de visualizar este fenómeno – facto que hoje em dia ninguém com olhos na cara põe em causa – e a exigência de justiça – reconhecimento e reparação às suas vítimas, espaço em que ainda há tanto para andar –, avançou-se até uma nova emergência: a luta pela prevenção, por evitar que esta ocorra. Uma reclamação derivada da urgência de evitar por todos os meios que uma pessoa seja submetida a tortura, possibilidade que sob o regime de incomunicação supera o nível do mero risco ou da suspeita. Pode-se objectar que a luta contra a tortura deve tender para a sua erradicação, mas a angústia do detido e das próprias famílias deve ser aliviada por mecanismos sérios e eficazes de prevenção. Assim, a preocupação tornada pública por centenas de recomendações de especialistas obrigou a ensaiar pelo menos três mecanismos para a prevenção da tortura.

O Protocolo Facultativo das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura instaura um sistema independente de visitas aos centros de detenção, por meio do qual se poderia ter conhecimento in situ de possíveis práticas de maus tratos. O órgão que desenvolva esta função será definido por cada um dos estados que ratifiquem o Protocolo. O espanhol andou a manobrar durante três anos para que este mecanismo fique nas mãos do Defensor do Povo, o nefando Mújica Herzog, e se lhe subtraia, assim, um dos seus pilares básicos: a supervisão da sociedade civil e, com isso, a sua independência e, portanto, eficácia. As associações de direitos humanos rechaçaram esta adjudicação de forma unânime, por considerarem que leva este mecanismo a uma situação de bloqueio, além de gozar com o organismo universal que o impulsiona.

O Protocolo para a Assistência a Pessoas Detidas em Regime de Incomunicação da Ertzaintza impunha certas medidas que deviam prevenir os maus tratos. Contudo, a sua virtualidade não reside no facto de que estas funcionem – algo duvidoso, tal como denunciou o próprio Ararteko [Defensor do Povo] –, mas na capacidade dos seus responsáveis políticos de evitar a incomunicação pelas oposições que esta recebe... até à próxima vez em que haja interesse em recorrer a este regime de custódia, sempre presente, decisão que descansa na vontade dos comandos policiais.

Por último, o denominado «protocolo Garzón» implicaria a aplicação de três medidas: pôr os familiares ao corrente da situação das pessoas detidas sob incomunicação; permitir que um médico externo e de confiança da pessoa detida a possa visitar; e, coisa que os nossos olhos ainda não chegaram a ver, promessa de que se fará gravação do período sob incomunicação. Essas três medidas – que não aparecem acreditadas em nenhum texto legal, regulamentar ou pelo menos no guardanapo de papel da cafetaria onde o seu autor as imaginou – acabam por se aplicar de forma aleatória, voluntarista, sem qualquer tipo de obrigatoriedade nem de rigor, hoje sim, amanhã não, o que fere de morte a sua eficácia. Com efeito, dos seis juízes de instrução da Audiência Nacional, três mostram-se a favor e três contra a sua aplicação. Os motivos talvez se devessem encontrar no artigo do boletim El Confidencial, que protestava porque se tinha retirado da investigação nove supostos membros da ETA ao juiz Grande-Marlaska, emblema da tríade que se nega a pôr em prática essas medidas. O boletim, citando fontes policiais, censura que “Garzón se tenha armado em garante, ao ponto de fazer observar certas recomendações da ONU [...] que outorgam aos suspeitos de actividades terroristas prerrogativas que tornam realmente difícil a investigação policial no momento de obter informação dos detidos”. Tal prerrogativa não é outra que o direito ineludível a não ser submetido a tortura! Essa atitude de apologia da tortura e de elogio à sua eficácia para os propósitos da investigação é, sem dúvida, o maior dos obstáculos com que deparam aqueles que denunciam a existência desta maldição.

Devemos deduzir, pois, que o Estado espanhol não tem nenhuma vontade de adoptar medidas concretas contra a prática da tortura, porque lhe é rentável. Assim, mantêm a justificação do período de incomunicação e, com ele, da tortura, ante a opinião pública, insuflando a veia irracional da emergência antiterrorista que tudo justifica. Por outro lado, ao não terem mais argumentos face a organizações de especialistas internacionais, as autoridades toleram abrir espaços de debate sobre medidas de prevenção, para baixar a tensão perante esses organizações. Depois, levá-las-ão a um beco sem saída. Porque, na sua actuação diária, preferem comportar-se à etrusca.

Julen ARZUAGA
Giza Eskubideen Behatokia /
Observatório de Direitos Humanos


Fonte: Gara