segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Euskadi: a fórmula Saint Jean


Na tenebrosa Argentina da ditadura pensar era um crime e, como tal, éramos todos suspeitos a priori. Ninguém sintetizou melhor esta visão criminosa e paranóica do mundo que o General Ibérico Saint Jean quando, em Maio de 1977, disse que «primeiro mataremos todos os subversivos, depois mataremos os seus colaboradores, depois… os seus simpatizantes, em seguida… aqueles que permanecem indiferentes, e finalmente mataremos os tímidos.»

Esta sombria reflexão acode-nos imediatamente à consciência ao ler as notícias que dão conta da razia praticada por mais de 650 agentes da Polícia espanhola e da Guarda Civil e que culminou com a detenção e transferência para Madrid de 34 jovens do País Basco, acusados de «terroristas». Acontece que em Espanha, tão exaltada como exemplo de uma bem-sucedida transição do franquismo para a democracia, aquele qualificativo pode ser atribuído a qualquer pessoa que em Euskadi se atreva a pensar que seria bom alcançar uma solução negociada para o conflito político que há décadas agita o País Basco, ou que se manifeste a favor de uma amnistia ou, simplesmente, que tenha a ousadia de exigir que se ponha fim à tortura que é aplicada rotineiramente - apesar das numerosas denúncias de organizações internacionais - a quem tenha a infelicidade de cair nas mãos das forças repressivas do Estado espanhol.

A intransigência irracional de Madrid fica muito bem sintetizada nas palavras dirigidas há pouco pelo Ministro do Interior aos independentistas bascos: «Mesmo que a esquerda abertzale dissesse que condena a violência e solicitasse a sua legalização 'a resposta vai ser radicalmente não'.» Este mesmo personagem já antes tinha colocado os independentistas perante a escolha: «ou votos, ou bombas», e, quando estes disseram «votos» - e apresentaram a candidatura Iniciativa Internacionalista para o Parlamento Europeu -, este santo homem, democrata até ao tutano, aplicou-lhes o garrote vil da Lei de Partidos e condenou-os a uma permanente ilegalidade.

Fechadas todas as vias legais para quem não pensa como Madrid quer que se pense, não é preciso ser um sábio para inferir que as vias extra-legais se nutrirão com o crescente apoio de tanta gente que em Euskal Herria não está disposta a renunciar ao direito à autodeterminação dos povos, uma conquista histórica que o Estado espanhol se recusa teimosamente a reconhecer, já que nem sequer autoriza uma espécie de «quarta urna», como a imaginou Zelaya nas Honduras, para que o povo, soberano inapelável de qualquer democracia digna desse nome, diga se quer ou não ser consultado sobre a questão.

A doutrina do terrorismo omnipresente tão cara aos militares argentinos foi aplicada nesta oportunidade contra uma organização juvenil, Segi. O tragicómico de tudo isto, retrata-o mais uma vez o diário El País (outro mito jornalístico, de prestígio tão manufacturado como imerecido) quando informou os seus leitores que, mediante o «vandalismo terrorista a Segi procurava aumentar a pressão sobre as chamadas 'lutas prioritárias': a construção do 'estado basco' e o combate contra o TGV, o modelo educativo de Euskadi e a especulação imobiliária.» Como o leitor pode apreciar, estes jovens prisioneiros tinham uma agenda não só revolucionária como também terrorista: opor-se ao combóio-bala que destruiria o meio ambiente e dividiria regiões inteiras do país é um acto inegavelmente vandálico e terrorista, o mesmo que discutir o modelo educativo, coisa que se está a fazer por todo o lado na Europa, e combater a especulação imobiliária, causadora de gravíssimos problemas em Espanha e no País Basco.

Na sua grande maioria a Segi é formada por jovens universitários independentistas, activamente vinculados a diversas associações que desenvolvem tarefas comunitárias. Como se fosse um insulto à informação oficial, deixou saber que alguns destes vândalos «ocuparam cargos de representação estudantil na Universidade». Segundo as explicações brindadas pelo Ministério do Interior, os detidos tê-lo-iam sido por «exercerem supostamente funções de responsabilidade na Segi». Ou seja, presume-se a comissão de um delito, e isso basta para encarcerar os suspeitos numa operação efectuada, como na Argentina daqueles anos de chumbo, a altas horas da madrugada e a cargo de pessoal encapuzado.

Basta ligar os acusados a qualquer pessoa ou organização que no passado tenha actuado na legalidade defendendo o projecto independentista para ser considerado um terrorista. Basta partilhar o projecto estratégico da independência e o socialismo - mesmo quando se condenam os métodos violentos para o alcançar e se opta pelas tácticas de Mahatma Gandhi - para que todo o peso da «justiça» caia sobre os acusados. Pensar ou sonhar são delitos imperdoáveis. Mediante esta monstruosidade jurídica, pune-se a pessoa, não os seus actos. O corolário desta retrógrada concepção é uma justiça que não reconhece o habeas corpus, trava a acção dos advogados de defesa, impede a presença de um médico de confiança, estabelece cinco dias em regime de incomunicação sem notificar os familiares sobre o paradeiro do detido, legaliza a tortura e os maus tratos, e leva a julgamento os acusados fora da jurisdição ordinária, num tribunal de excepção herdado da época franquista.

As violações aos direitos humanos que Madrid perpetra diariamente em Euskadi são irremediavelmente incompatíveis com a democracia. Provas: um, o juiz da Audiência Nacional que conduz o processo, Fernando Grande-Marlaska, rejeitou o pedido dos advogados de defesa para que fosse aplicada aos detidos o «Protocolo Garzón», que requer que sejam assistidos por um médico de confiança, que o período de detenção seja gravado e que os familiares sejam informados a todo momento sobre o paradeiro e o estado dos detidos. Por alguma razão o terá rejeitado.

Dois: é surpreendente verificar que em certos aspectos o governo espanhol faz o que nem a ditadura argentina se atreveu a fazer. Por exemplo: proibir a exibição pública de fotografias das vítimas da repressão que faziam os familiares, amigos e os movimentos de solidariedade, uma maneira subtil de tentar fazer «desaparecer» pessoas, menos criminosa que a que conhecemos na Argentina, mas também violadora dos direitos humanos. Por isso em muitos bares, desses que proliferam por toda Euskal Herria, as fotos dos independentistas detidos nas prisões espanholas foram substituídas pelas suas silhuetas faciais.

Ao criminalizar a dissidência política e a aspiração independentista, o Estado espanhol volta a afundar-se nas suas piores tradições, sintetizadas na nefasta maridagem entre a cruz e a espada. Tradições que durante três séculos padeceram os povos da Nossa América depois da conquista e que, na Argentina, haveria de reaparecer no discurso e na prática da ditadura militar: matar os subversivos, os seus colaboradores, os seus simpatizantes, os indiferentes, e os tímidos. Uma escalada infernal de morte e destruição que submergiu este país num banho de sangue mas que, a longo prazo, foi derrotada pela capacidade de resistência e de luta das vítimas.

Seria conveniente que Madrid estudasse o que se passou na Argentina, e tomasse nota de duas grandes lições que a nossa história deixa: primeiro, que a repressão tem custos crescentes e uma decrescente eficácia dissuasora, e que, portanto, não serve para resolver nenhum problema social ou político como os que a questão basca suscita; segundo, que se não detiver, antes de que seja demasiado tarde, a aplicação da «fórmula Saint Jean» para enfrentar as aspirações independentistas dos bascos, o futuro dos diversos povos e nações que dificultosa e conflituosamente convivem no Estado espanhol poderá assumir as características de uma tragédia de inéditas proporções.

Atilio Boron
http://www.atilioboron.com/

Fonte: lahaine.org