A tortura, no Estado espanhol, é uma prática generalizada em todos os corpos policiais, e os dados dos últimos cinco anos mostram que as denúncias aumentaram, enquanto os torturadores gozam de impunidade. Este deterioramento da situação produz-se graças a um marco jurídico com zonas obscuras que amparam estas práticas. São assim contundentes as conclusões do relatório «Privação de liberdade e direitos humanos», que apresentou ontem em Barcelona uma equipa de investigadores composta por grupos de advogados, centros universitários e organizações de defesa dos direitos humanos.
O relatório foi apresentado no contexto das jornadas que a Coordenadora estatal para a Prevenção da Tortura organiza em Barcelona por estes dias. Esta coordenadora agrupa 40 colectivos de defesa dos direitos humanos do Estado espanhol. Os dados lançados pelo relatório mostram que, das 610 denúncias no conjunto do Estado no ano de 2006, se passou às 720 de 2007. Euskal Herria, com 112 denúncias, situa-se como o segundo território onde se apresentaram mais, depois dos Países Catalães.
Iñaki García, director do Observatório do Sistema Penal e dos Direitos Humanos da Universidade de Barcelona e coordenador do relatório, assegura em declarações ao GARA que a situação é preocupante, ainda mais quando há uma ausência total de vontade por parte do Governo espanhol para implementar os mecanismos de prevenção da tortura recomendados pelas instituições internacionais.
Esta atitude governamental é a que impede a modificação do que o relatório chama “marco jurídico da tortura”, que não é mais que o conjunto de leis que deixam espaços onde os detidos ou encarcerados sofrem situações de isolamento que facilitam a prática da tortura. Estes espaços são o de período de incomunicação sob alçada da legislação antiterrorista e os regimes policiais e penitenciários de isolamento, onde a solidão impede que haja testemunhas em casos de tortura ou maus tratos aos detidos e presos.
Para além da análise da jurisdição estatal, o relatório estudou as denúncias apresentadas por tortura entre 1 de Janeiro de 2002 e 31 de Dezembro de 2006, e detectou grupos especialmente vulneráveis: os menores em centros de internamento, as pessoas estrangeiras que se encontram em centros de reclusão, as mulheres encarceradas (que são especialmente vítimas de torturas sexuais), os detidos sob a Lei Antiterrorista – tanto os presos relacionados com o conflito basco como os denominados “terroristas islamitas”, estes últimos especialmente débeis por carecerem de organizações de apoio – e os presos por motivo de dissidência política – inclui independentistas catalães, “okupas” e membros de outros colectivos anti-sistema, que sofrem os maus tratos sobretudo no momento da detenção.
Falta de vontade política
Na mesa de inauguração das jornadas de Barcelona, que encerram hoje, os assistentes concordaram que a implementação das medidas recomendadas pelos organismos internacionais para pôr fim à tortura depende da vontade do Governo. Todos lamentaram, a este respeito, que esta vontade seja inexistente no caso espanhol.
Lluïsa Domingo, presidente da comissão de defesa do Col·legi d'Advocats de Barcelona, contou que houve reuniões de trabalho entre os ministérios da Justiça, do Interior e dos Negócios Estrangeiros com a Amnistia Internacional, o CPT [Comité Europeu para a Prevenção da Tortura] e o mundo académico, mas que nenhuma serviu ainda para pôr em marcha os mecanismos que o Governo espanhol ratificou em Abril de 2006 por recomendação da Comissão Europeia.
Em nome da Amnistia Internacional, o director da secção espanhola, Esteban Beltran, lamentou que haja uma impunidade efectiva na prática da tortura, porque existe um problema de origem: não se quer reconhecer que esta prática não se limita a uns casos isolados, e como consequência não se pode resolver o problema estrutural de fundo.
A decisão dos governos basco e catalão de instalar videocâmaras nas esquadras suscitou distintas reacções entre as organizações que participam nas jornadas. Por um lado, o director da Amnistia Internacional considera que são uma boa ferramenta para combater a tortura, se se implementam de acordo com as recomendações internacionais, ainda que reconheça que não terminam com a problemática.
Por outro lado, Jorge del Cura, em nome do CPT, mostra-se muito mais céptico com o uso de câmaras nas esquadras. Considera que a única coisa que conseguem é mudar o lugar onde se produzem as agressões, e alerta que o objectivo da sua instalação é fazer crer à população que o Governo quer acabar com a tortura.
O discurso mediático
O relatório faz finca-pé no tratamento que os meios de comunicação dispensam às notícias sobre maus tratos frente às informações sobre cometimento de delitos, pois considera que o enfoque aumenta a sensação de alarme social, e a população pede uma mão mais pesada contra os detidos.
Mas há uma excepção, acrescenta o relatório: o periódico GARA diferencia-se do resto dos meios porque, segundo aponta Iñaki García, “sempre prestou especial atenção às denúncias de tortura”.
Um tratamento adequado por parte dos meios de comunicação às notícias sobre tortura e maus tratos, juntamente com uma legislação que a combata, uma sociedade civil organizada e investigações independentes e imediatas das denúncias foram os pontos de encontro dos participantes nas jornadas para combater uma prática que os relatórios mostram que está a aumentar.
Fonte: Gara