No final de uma visita de uma semana ao Estado espanhol, o relator especial da ONU sobre a Promoção e Protecção dos Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais na Luta contra o Terrorismo, Martin Scheinin, reflectiu sobre a definição que a legislação espanhola apresenta dos delitos de “terrorismo”, tendo sublinhado que estes devem incluir um “elemento fundamental de violência física mortal ou grave contra a população em geral ou seus segmentos”, e alertado contra “definições vagas e amplas que acabam por minar a firme mensagem moral inerente às definições estritas baseadas no carácter indesculpável de cada acto de terrorismo individual”.
“Rolar pela encosta abaixo”
A este respeito, Scheinin qualificou de “sensata” a definição que se faz dos delitos de terrorismo no artigo 157 do Código Penal espanhol, mas realçou que outras disposições relativas a esta questão, como “a referência a ‘qualquer outro delito’, no artigo 154, a noção de ‘colaboração’, no artigo 576, e a disposição emendada no artigo 577 sobre a violência de rua, acarretam o risco de uma ‘gradual deterioração’” da definição de terrorismo. Isto implica o risco, acrescentou, de “se ir alargando, pouco a pouco, a noção de terrorismo a acções que não constituem e não têm relação suficiente com actos de violência grave contra a população em geral”. E afirmou ainda que, “quando se começa a rolar por essa encosta, se corre o risco de violar muitos direitos”.
No parecer deste relator finlandês da ONU, o facto de se estar a aplicar “a detenção em regime de incomunicação” relaciona-se com a deterioração referida. Por isso, pediu ao Governo espanhol que inicie um processo de exames periciais independentes sobre o carácter apropriado das actuais definições e o risco de deterioração gradual. Mais do que isso. Scheinin apelou ao fim do regime de incomunicação. Pensa que isto daria credibilidade às medidas “antiterroristas” e contribuiria para eliminar a “zona cinzenta” em que o detido está sozinho.
No que diz respeito às denúncias de torturas e maus tratos sobre detidos, Scheinin pediu ao Governo “maior vigilância no seu compromisso para erradicar a tortura” e disse estar consciente do “uso generalizado da tortura” durante o regime franquista. Apesar de esclarecer que não considera que tenha havido “uma continuação” desta prática, mostrou-se preocupado com o facto de “continuarem a existir alegações de tortura e maus tratos sobre suspeitos de delitos de terrorismo, e de, a partir daí, não surgirem investigações rápidas e independentes”. “Estou convencido de que a existência dessas alegações e a sistemática falta de investigação independente minam a luta antiterrorista de Espanha”, asseverou.
Não só jurisdição da AN
O relator fez outro pedido ao Executivo espanhol: que estude a possibilidade de os “delitos de terrorismo” não serem unicamente da jurisdição da Audiência Nacional, e que possam ser julgados por tribunais ordinários. Explicou que, devido ao facto de no Estado espanhol só a Audiência Nacional se encarregar dos casos de “terrorismo”, e uma vez que a função do Supremo Tribunal se limita tradicionalmente a questões de direito, os mecanismos existentes de revisão por um tribunal superior, aos quais tem direito toda a pessoa condenada por um delito, padecem de uma deficiência estrutural. E constatou que, apesar das medidas adoptadas para abordar esta questão, o problema continua vigente.
Durante a visita, Scheinin reuniu-se com vários representantes políticos espanhóis. Há quatro anos, um outro relator especial da ONU, Theo Van Boven, tinha apresentado um relatório bastante crítico relativamente à prática da tortura no Estado espanhol, no qual também censurava o regime de incomunicação. As autoridades espanholas fizeram caso omisso das suas recomendações e trataram de o desacreditar.
Fonte: Gara