O julgamento que está a decorrer na Audiência Nacional contra os membros das Gestoras Pró-Amnistia e a Askatasuna, organizações de referência no âmbito da denúncia de violações dos direitos humanos e da solidariedade com os presos bascos, é mais uma peça no labirinto kafkiano de que faz parte o macro-processo 18/98. A tese “garzoniana” é já conhecida: todos os grupos ligados à esquerda abertzale são, ou estão destinados a ser, “apêndices” da estrutura da ETA. Foram criados, “devorados” ou “colonizados” por ela, e respondem às suas directrizes. Partindo dessa singular premissa, a máquina penal da Audiência Nacional transformou-se num gigante em contínua expansão destinado a ilegalizar e a isolar todo aquele que encontra pela frente, sob a acusação de pertença a um grupo armado, ou de colaboração com ele. Foram encerrados jornais, ilegalizaram-se grupos eleitorais, fundações, partidos e outras organizações políticas, e até se impediram manifestações ou reuniões. Todo um direito penal do inimigo característico de “tempos de guerra”, que persegue ideologias em vez de factos, inspirando-se numa velha e nunca apagada tentação totalitária: a ideia de que se deve castigar não pelo que se fez mas pelo que se é.
Nesse contexto, não se torna estranho que a denominada “luta contra o terrorismo” atinja também os defensores dos direitos humanos ou os advogados da esquerda abertzale que têm vindo a denunciar esse retrocesso. Há não muito tempo, a Audiência Nacional levantou o testemunho de particulares na própria sentença do sumário 18/98 contra dois dos advogados de defesa, Jone Goirizelaia e Jose María Elosua, acusados de injúrias terroristas – delito que nem sequer está configurado no nosso ordenamento jurídico – por se referirem, no exercício da sua liberdade de expressão e do direito de defesa, às torturas sofridas por quem representavam. Agora, novamente no mesmo tribunal, julgam-se os advogados das Gestoras Pró-Amnistia sob a acusação de fazerem parte da «frente de macos» – ou prisões – da organização armada.
Por este motivo, algumas associações de advogados como a AED (Advogados Europeus Democratas) têm vindo a realizar um trabalho jurídico de observação, acompanhamento e denúncia desses processos. No julgamento das Gestoras, os advogados europeus denunciaram, entre outros aspectos, a entrada e o registo de despachos profissionais de advogados como Julen Arzuaga, membro da própria AED, sem as garantias devidas ao segredo profissional e à confidencialidade das comunicações com os clientes. Numa situação muito parecida, mas infelizmente não tão conhecida, encontra-se o advogado Juanma Olarrieta, encarcerado sob a acusação de pertença a um grupo armado, em função da sua actividade profissional de defesa, em Madrid, dos presos do GRAPO.
Com estes e outros casos põem-se em evidência, como já apontava a própria ONU na sua resolução 53/144 de 1998, as dificuldades e os obstáculos que enfrenta o trabalho de denúncia de maus tratos e torturas, inclusive por parte dos profissionais do direito. Fazer sair do silêncio e da escuridão tais actos de barbárie é, ainda hoje, uma verdadeira tarefa titânica, de risco. Na Catalunha, para não ir mais longe, puderam-no comprovar recentemente, e uma vez mais, os membros do Observatório do Sistema Penal da U.B., aos quais o Governo catalão proibiu o acesso às prisões catalãs, para realizarem o trabalho de investigação e acompanhamento dos maus tratos ou das torturas denunciadas.
As pessoas ou organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos e à denúncia das suas violações são a base imprescindível para a constituição da confiança nos mecanismos específicos de protecção dos cidadãos face ao arbítrio punitivo. Aqui e em qualquer parte do mundo. A não compreensão desse papel fundamental e a sua perseguição não são mais do que outro signo inconfundível do retrocesso autoritário e da perda de legitimidade política do actual estado de direito.
Jaume ASENS *
* Vogal da Comissão de Defesa do Colégio de Advogados de Barcelona
Fonte: GARA