quinta-feira, 15 de maio de 2008

À Meritíssima, Angela Murillo

Luis Beroiz, Pai de um torturado condenado



Já tínhamos ouvido falar muito de ti, sobretudo desde que presidiste ao julgamento mais leviano que se realizou desde o processo de Burgos[1]. As coisas que se disseram de ti não as vou reproduzir agora, nem me vou apoiar na reacção contra ti de centenas de juristas de aqui e de ali, nem me vou deter na iniciativa de um tripartido[2] que te denunciou por violação de direitos e liberdades elementares ao mesmo tempo que, paradigma do sarcasmo eleitoral, depositava os nossos filhos no teu colo. Não, meritíssima. E não o farei porque o gozo íntimo que experimentais perante estas contundentes respostas só é equiparável à dor que os vossos veredictos disseminam.

Não sou ninguém, pois, para falar do mega-processo 18/98[3], mas sim para fazê-lo sobre o processo 36/2004, em que ambos fomos protagonistas: tu presidindo ao julgamento e eu contemplando como o fazias. A primeira surpresa surgiu quando, ali mesmo, nos apercebemos da troca do tribunal, pois vocês não eram os inicialmente designados. A segunda quando, ao iniciar-se a sessão, enojada, ameaçaste expulsar-nos da sala se continuássemos a dar mostras de carinho – que dada a tua advertência, foram furtivas – aos nossos filhos, irmãos e amigos ali enjaulados.

Em frente tinhas os acusados, em grande número, de cara descoberta, sorridentes e tranquilos. À tua direita, escondidas atrás de um biombo, desfilaram as testemunhas que o tripartido enviou, entre os quais, de forma suspeita, desta vez não estavam os que os interrogaram, os seus torturadores. O teu trabalho era simples: acreditavas nuns ou acreditavas noutros. Os rapazes limitaram-se a manifestar a sua inocência, apresentaram testemunhas fiáveis e narraram-te com detalhe o terrível trato a que foram submetidos. Os agentes, à frente, fizeram sentar no banco um rapaz, Kepa Saratxaga, que no dia apontado nos autos não podia ter estado onde diziam, porque se encontrava injustamente na prisão e tu, ciente de que os que o referiram, vários, isoladamente e um sem o conhecer, o fizeram sob tortura, não te alteraste e continuaste com a farsa; estes mesmos credíveis agentes fabricaram-te com pontas de cigarro e sacos de plástico duas toscas provas, indemonstráveis e construídas grosseiramente a posteriori. Tinhas, pois, em frente a polícia com mais inocentes falsamente incriminados por metro quadrado, como tinhas obrigação de ter comprovado recorrendo às sentenças de processos anteriores. Posto isto, abandonámos a Audiência esperançados, apesar do período eleitoral e da orgia de câmaras presentes no acontecimento.

Já em casa, há poucos dias, umas chamadas anónimas, feitas a partir de um número desconhecido à meia-noite, e, principalmente, a perseguição de que os rapazes foram alvo (novamente!), inclusive até à porta de casa, alarmam-nos, anunciando o pior. E o pior teve lugar. Acabámos de tomar conhecimento, através da imprensa (!), da tua condenação. Cinco anos como podiam ter sido cinquenta. Como prémio concederam-te a Presidência da Quarta Secção do Tribunal Penal da Audiência Nacional. Em boa hora, Meritíssima. Voltarei a escrever-te quando ler a tua impúdica sentença.

Entre os teus condenados, e ainda que a reflexão que vou apresentar seja aplicável a qualquer um deles, há um que conheço melhor e de quem sei mais coisas. Como os outros, foi torturado, injustamente encarcerado, isolado dois anos e meio, e finalmente liberto porque, entre outras pérolas, também disseram que ele tinha estado em dois sítios ao mesmo tempo e que recém-operado, tinha corrido com muletas. Podia contar-te o seu quase mortal acidente, o seu simulacro de linchamento quando uma besta nos cilindrou, da sua pneumonia, da sua necessidade de acompanhamento psicológico. É um rapaz que, por tê-lo desmascarado, o nosso conselheiro do Interior necessita dele preso. Para o conseguir, ele, que mentiu uma, cinco, dez vezes, voltou agora a fazê-lo. Num outro dia, Meritíssima, contar-te-ei o que a ameaça de três doenças, daquelas que mais matam, fez às nossas vidas desde que esse inominável nos acossa. Como podes comprovar, Angela, as vossas sentenças acarretam uma condenação muito mais cruel que os dígitos que delimitam os anos de prisão.

O conselheiro, depois de sucessivos fracassos, encontrou, finalmente, uma juíza à sua medida. Juntou-se a fome com a vontade de comer. O que não conseguiu com outros conseguiu contigo. Porque tu também foste levada pelas bilocações. Tu também localizaste um condenado aonde ele não podia estar pois nós, os seus pais e várias testemunhas, estávamos com ele, na noite dos autos, no estabelecimento onde servia. Tu saberás por que o fizeste. Tu saberás por que reinventaste o princípio “na dúvida a favor do trapaceiro”. Estudar leis para violar direitos é o mesmo que estudar pediatria para agredir crianças.

Estamos fartos. Três vezes detido, três vezes interrompidos os estudos, pela terceira vez o isolamento cruel, e pela terceira vez a viajar para muito longe aos fins-de-semana. Decidiste o nosso modus vivendi para os próximos cinco anos. E agora o quê? Aprendi de pequeno que justiça era dar o seu a cada um, por mais que aqui [a chapada] vá sempre parar à mesma bochecha, a nossa. Não nos resta, então, outro modo de equilibrar a balança que procurar alcançar, por nossa conta, essa justiça que nos estás a negar. Exigem-nos a dignidade e as vísceras, ainda que de momento só façamos caso da primeira. Diz-me que farias tu se tivessem feito o mesmo ao teu filho. Não estou disposto a esperar por outra lei da memória que nos ressarça da perversidade dos vossos veredictos.

Porque vocês não julgaram o incêndio de um par de caixas automáticas, cuja autoria, sem desresponsabilizar a polícia autonómica, deves tu conhecer. Não. Isso não importa nada. Vocês precisam dos julgamentos políticos e utilizam-nos para exercitar o ódio a tudo o que representamos, para saciar a vossa sede de vingança. Claramente. É, pois, o momento de pôr os pontos nos is. És capaz de imaginar do que podem ser capazes os pais que sabem da inocência e da tortura dos seus filhos? Não vais tardar a sabê-lo. O contrário seria renegar a nossa condição de progenitores. Meritíssima. Pelo nosso povo, não te digo que não, poderíamos assumir esta imensa dor, mas jamais para satisfazer os vossos baixos instintos. Nem tu nem o conselheiro cipayo[4] vão continuar por mais tempo a amargar-nos a existência. Porque, a menos que o Supremo cobice menos histeria e mais coerência, se não pudermos partilhar o lar com o nosso filho livre, partilharemos a prisão com o nosso filho preso.


[1] Julgamento sumário de 16 pessoas, que decorreu a em 3 de Dezembro de 1970, durante o regime franquista, acusadas de matar 3 pessoas e de pertença à ETA, e condenadas à morte. Ler

[2] O actual governo autónomo de Euskadi é formado por 3 partidos: PNV (Partido Nacionalista Vasco) em maioria, EA (Eusko Alkartasuna) e EB (Ezker Batua).

[3] Conjunto agregado de processos judiciais movidos pelo Estado espanhol contra cidadãos bascos ligados a jornais, associações juvenis, ambientalistas, culturais, sociais, de promoção da desobediência civil e de defesa dos direitos humanos acusados de fazer parte do “aparato civil da ETA”. O processo revestiu-se de um conjunto vasto de irregularidade e culminou na condenação, em Dezembro de 2007, de 46 pessoas a uma pena que, no conjunto, supera os 500 anos e prisão. Ler e Ler.

[4] Termo que deriva do turco spahi que designava os membros de uma topa de cavalaria do império Otomano. Mais tarde, os sepoy eram os nativos da Índia recrutados como soldados ao serviço do império britânico. No País Basco usa-se para referir de forma pejorativa a polícia autonómica basca (Ertzaintza).


Fonte: Izaronews