sábado, 2 de agosto de 2008

A liberdade é indivisível

Dizia Ortega a partir do seu observatório espanhol que “não sabemos o que se passa, e é isso, precisamente, o que se passa”. Contudo, o problema espanhol, o que impede os espanhóis de penetrar firmemente em qualquer modernidade, é que jamais triunfou em Espanha uma revolução que alterasse a mentalidade dos habitantes deste malfadado país. A constatável invalidez intelectual dos espanhóis para tomarem conta de si mesmos provém do fracasso dos movimentos que procuraram introduzir a paisagem da liberdade em Espanha. Foram esmagadas a rebelião das Germanias, a revolta dos Irmandiños, a dos Comuneros, duas monarquias com pretensões de abertura – a de José Bonaparte e a de Amadeu de Sabóia – e finalmente duas Repúblicas. Alguns espanhóis tentaram dotar o seu país de uma soberania dos cidadãos responsável, mas não puderam superar o espírito secular de guerrilha e caudilhismo, as duas manifestações recorrentes da vida pública de Espanha. O carpetovetónico (1) está preso a uma profunda predisposição para se revoltar – com expressão que revalidou um sólido espanhol, o Sr. Azkuna – ou para ir na canga do carro de um soberano reaccionário para o conduzir em triunfo até Madrid.

Vivemos agora uma situação que expressa perfeitamente este fundo de armário da espanholidade. A incapacidade para conceber a liberdade e, com ela, uma certa democracia, volta a surgir do fundo social como um geyser. A liberdade é cortada em cem liberdades raquíticas que a cidadania hispânica elabora para evitar uma profunda tomada de atitude com vista ao exercício democrático. Toda a gente é livre em Espanha excepto toda a gente. É curioso, isto de todos os espanhóis serem livres enquanto o povo espanhol não o é.

O fenómeno sempre atraiu os viajantes de fora, que escreveram, inclusivamente com elogios, acerca desta teratológica vida espanhola. Um fino observador francês, Camille Mauclair, escreveu uma obra sugestiva – L’Apre et splendide Espagne [A Esplêndida e Áspera Espanha, 1931] – sobre o que poderíamos chamar, não a vida, mas antes o acontecimento espanhol. Vive-se em Espanha com liberdades de bairro, de café, de tertúlia estridente ou de gabinete ministerial. A concepção da liberdade como uma entidade indivisível, que torna vigorosas as particularidades mediante o exercício da dialéctica, jamais se arraigou em terra espanhola. Quando alguém, desde o poder, fala de defesa da liberdade, deixa sem liberdade milhares de cidadãos espanhóis. Não há maneira de a liberdade funcionar sem adjectivos em Espanha, porque essa grande e única liberdade, a que permite uma eficaz colheita dialéctica, é considerada uma matéria explosiva, uma proposição desonesta, uma prática criminosa. A liberdade vive sempre em esconderijos que a Guarda Civil acaba também por encontrar, conduzida por dirigentes políticos que se revezam para fazer o mesmo, embora de modo distinto.

O acima exposto conduz a uma situação repetida de caquexia vital, de pobreza mental. A classe dirigente espanhola, que contamina profundamente as massas, não entende que a liberdade ideológica acarreta uma prática dialéctica que enriquece os indivíduos e os torna aptos para uma democracia saudável. Há duzentos anos, disse-se isto na Assembleia Nacional francesa: “Cada secção do (povo) soberano deve gozar do direito a exprimir a sua vontade com inteira liberdade; é essencialmente independente de todas as autoridades constituídas e dona de organizar e regulamentar as suas deliberações”. Há já duzentos anos! Uma liberdade verdadeira, ou seja, indivisível, que se atreva a manejar todas as questões sem cirurgias hipócritas e destrutivas, cria um país com seguranças morais que contribuem para um bom desenvolvimento mental. Essa liberdade gera o hábito de aceitar todos os problemas e de os dissecar até às últimas fibras. Sem uma liberdade plena – isto é, sem a capacidade para ver os problemas em toda a sua verdadeira dimensão e sem incorrer em excomunhões –, os cidadãos tornam-se agressivos e as instituições são opressoras. E, na verdade, cidadãos agressivos ao serviço de instituições opressoras são o que define o fascismo.

Pode-se afirmar que Espanha é um país que vive em ditadura permanente. Mas não na ditadura romana, concebida para casos de emergência – que também não foi benéfica para a liberdade de Roma –, antes numa ditadura socialmente abrasadora e suscitadora de todas as barbáries, incluindo as jurisdicionais. Um cauto conservador catalão, o Sr. Cambó, procurou fabricar uma moldura aceitável para as ditaduras em Espanha, ao exigir para as ditas as três condições romanas: tempo limitado, assunto concreto e prestação de contas. O Sr. Cambó fracassou clamorosamente. Isto deveria ter-se muito em consideração, para que a cidadania espanhola saiba no que embarca com a ditadura factual que estamos a viver sob pretexto, entre outras coisas, da questão basca. O pacto antiterrorista, num exemplo perfeito dessa situação ditatorial. Se analisarmos a proposta camboniana, concluímos que o tempo limitado de exercício do poder acaba inevitavelmente por gerar o ditador interminável, embora esse ditador encarne em vários governantes sucessivos, que se traduzem na figura do ditador colectivo. O assunto concreto contamina os restantes assuntos que não entram teoricamente no âmbito ditatorial. E, finalmente, jamais haverá prestação de contas, como provam entre nós os quarenta anos de opróbrio franquista, cuja sombra é tão vasta.

Outra expressão da ditadura espanhola é a tumultuosa promulgação de leis prevaricadoras, que a judicatura utiliza como escalpelo político e sob a protecção da força armada, correctora de qualquer libertação do pensamento. Parlamento tão compacto ideologicamente como as Cortes Espanholas do ditador. Nada criativo, nos seus debates, que acabam sempre numa exibição de líderes pobres de qualidade e com uma equipagem ideológica estéril até à exaustão. Repetir, por exemplo, que não se pode discutir o problema nacionalista por causa da existência da violência é de uma miséria lógica aterradora, além de constituir uma alegação ruinosa para quem a faz, já que desvela indiscutivelmente que o actor dessa violência tão alardeada tem nas suas mãos nada menos que o poder político. E isso, sabemos que não é verdade. Um Estado em cujo seio não se possam abordar as grandes ou delicadas questões porque alguém pratica a luta armada, com acções muito ocasionais, é um Estado obviamente débil; um Estado que, além de estar afectado pela debilidade, maneja os acontecimentos com um só olho para não avançar no caminho que deixou previamente sem saída.

Mas dizer tudo isto não deixa de constituir uma decisão pouco confortável para os interesses vitais de quem o diz. Uma democracia paradoxalmente sem liberdade, como a espanhola, pende sempre como uma faca sobre o pescoço de quem manifesta essas ideias. Quando a liberdade se decompõe em tantas liberdades caprichosas como o poder quer instituir a qualquer momento, pode surgir a norma ou a interpretação circunstancial da norma que converte a reflexão intelectual e a quem a exerce num puro e fantasmático delinquente. Estamos nessa situação. Não devemos esquecer que o regime que resgatou o Regime conserva as armas que este último possuiu, que vai afiando com a imensidão de normas que o tornam letal, no contexto de um parlamentarismo inexistente e que é uma fachada oculta do pensamento único. Normas em que vejo de alguma maneira um velho e atrabiliário poder Manchu, repleto de funcionários inclinados perante o Trono.

Antonio ÁLVAREZ-SOLÍS

(1) carpetovetónico: referente a Carpetanos e Vetões, povos pré-romanos da Península Ibérica.

Fonte: Gara