E sobre cada uma destas grosserias devo apontar:
1 – Quanto às apreciações sobre a aparência de Iñaki De Juana - “Ao deixar esta manhã a cadeia na companhia da mulher e dos advogados, Juana Chaos não parecia ter acabado de fazer duas semanas de greve de fome”. Assim começa a peça. O comentário é, no mínimo, de mau gosto. Supostamente, em televisão, as conclusões sobre a aparência das coisas e das pessoas podemos tirá-las nós, espectadores, a partir das imagens que nos são dadas e que tomamos por verdadeiras. Apesar das imagens transmitidas não nos permitirem fazer qualquer julgamento sobre o estado de saúde do, agora, ex-preso, os jornalistas, pelo que nos é dado a conhecer, também não estiveram às 7h20 do dia 2 de Agosto à porta da prisão de Aranjuez e, portanto, as imagens que viram foram as mesmas que nós, Assim, a “observação” feita não é um elemento informativo completar da imagem mas sim uma tentativa de conduzir o público no sentido da depreciação de Iñaki De Juana e de minimização do significado da sua greve de fome.
Não vale a pena sequer dizer que este tipo de comentários é normal ou inocente, porque não é. Imagine-se, se, por exemplo, na notícia sobre o resgate de Ingrid Betancourt o jornalista tivesse feito o reparo sobre o seu excelente aspecto apesar das indicações de que estaria quase a morrer! Eu pensei nisso e, como eu, outros também o observaram. No entanto, se o jornalista o tivesse feito teria, não só marcado uma posição como, condicionado a avaliação de muita gente. Foi isso que Mendes Oliveira fez.
2 – Em relação à ocultação de factos e acontecimentos –
a) Não é explicada a razão que levou à última greve de fome de Iñaki De Juana. Uma greve de fome é um recurso violento a que os presos são barbaramente obrigados quando não é encontrada outra saída que leve à consideração das suas situações. No dia 14 ou 15 de Julho, não sei precisar, cerca de duas semanas antes da data prevista para a sua libertação, a Audiência Nacional espanhola pediu que fosse confiscada a residência da sua companheira e investigado se teria havido uma alienação de bens. Ao mesmo tempo o El mundo orquestrou uma campanha (a que a RTP se acaba de somar) para impedir que Iñaki De Juana volte a residir em Donostia (San Sebastian). O ex-preso estaria assim à beira, de mais uma vez, ver protelada a sua libertação.
b) Não é dito que esta greve de fome foi secundada pelos restantes presos políticos bascos na prisão de Aranjuez.
c) Não é dito que em 2007, Iñaki de Juana, depois de ter passado pouco mais de dois meses internado no hospital de Donostia (depois de ter realizado 115 dias de greve de fome!) voltou a ser transferido para a prisão, nem o porquê. Aliás, não fosse o início da peça falar em prisão e ficaríamos todos a pensar que o preso tinha sido libertado directamente do hospital. Iñaki De Juana foi transferido novamente para a prisão horas depois da ETA ter decretado o fim do cessar-fogo, a 6 de Junho de 2007. É legítimo colocar a questão: terá sido para evitar que os portugueses pensassem que se tratou de um acto de retaliação? Ou terá a RTP concluído que essa era uma informação sem importância? A última hipótese está certamente fora de questão - para um canal que relatou a velocidade a que se deslocou o cortejo fúnebre do futebolista Fehér, explicar a razão porque retiraram um homem em recuperação no hospital e o colocaram na prisão não é menos importante. Resta-nos a primeira ideia.
d) “Estão convocados protestos para Madrid e San Sebastian, no País Basco, (…)”. Os jornalistas não referiram a convocação de uma manifestação de “Ongi etorri” (boas-vindas) nem a deslocação de um autocarro a Aranjuez para receber De Juana à saída da prisão. Manifestação que contou, segundo o Gara, com cerca de 200 participantes e autocarro que foi impedido de chegar ao seu destino. A RTP também não noticiou a intenção do Governo espanhol de voltar a acusar ex-preso de delito de “enaltecimento do terrorismo” pela carta que terá sido escrita por ele e lida na referida manifestação de boas-vindas nem referiu que a polícia espanhola procedeu à identificação de vários dos presentes nessa manifestação. A RTP tampouco transmitiu imagens da manifestação de Madrid que noticiou, que, segundo a Sare Antifaxista, estava povoada por elementos falangistas. A mesma fonte refere também que Iñaki De Juana está a ser seguido por elementos nazi-fascistas. Mas nada isto, claro, é digno de referência pelo canal público. Falta de Meios? Falta de interesse informativo? Ou falta de competência e interesse político?
3 – A mentira – O jornalista refere que Iñaki De Juana deveria ter cumprido 20 anos de prisão e libertado no ano passado. Não é verdade, ele deveria, em função da legislação espanhola, ter saído em 25 de Outubro de 2004. Passou-se, no entanto, que afinal a lei não é igual para todos num dito estado de direito e que as redenções pelo cumprimento de estudos não serviram para este “espanhol”.
4 – O uso indevido de imagens – “A decisão foi nessa altura contestada na rua. O facto de Juana Chaos não ter mostrado arrependimento e de continuar a defender a via do terrorismo tem levado a imprensa e as associações de defesa das vítimas a condenar a libertação”. Estas frases são acompanhadas, na peça, das imagens de uma numerosa manifestação no País basco, frente ao que parece ser um hospital. Todavia, essas imagens são de uma manifestação em solidariedade com os presos políticos!!! É evidente que a maior parte dos espectadores não se terá apercebido disso. Só quem está seriamente atento ao que se passa no País Basco o poderia notar. Na imagem podem ver-se, para além das ikurriñas (bandeiras do País Basco) e das fotografias dos presos políticos, bandeiras da Askatasuna (organização basca de solidariedade com os presos políticos) e ouvir-se, sob a voz do jornalista, os gritos dos manifestantes: “Presoak kalera, amnistia osoa” (presos para a rua, amnistia geral).
Este “deslize” por si só merece um veemente protesto. É indigno para o jornalismo que preza esse nome. Não há desculpas para que tal aconteça. Se as imagens são compradas e a RTP não tem capacidade para fazer uma reportagem séria sobre o assunto então não a faça. Certamente nenhum dos presentes nessa manifestação gostaria de saber que a sua imagem serviu para ilustrar precisamente o oposto do seu objectivo. Os jornalistas Mendes Oliveira e Guilherme Terra, caso participassem num qualquer protesto (imaginemos uma manifestação contra a ETA), não gostariam, certamente, de ver as imagens colhidas aí como se fosse uma manifestação de apreço pela luta armada independentista basca.
Pergunto, não descartando a ironia, porque é que tendo havido contestação nas ruas do País Basco contra a libertação de De Juana Chaos não tenha a RTP arranjado imagens a condizer.
5 – A tomada como verdade absoluta do crime decretado pela Audiência Nacional espanhola ou como a RTP se tornou um altifalante dos interesses do poder espanhol – “foi condenado a nova sentença por ameaças a um juiz e por glorificar o terrorismo em artigos publicados num jornal basco”. Por esses ditos delitos Iñaki De Juana foi inicialmente condenado a 96 anos de prisão (facto também não referido). Pergunto se o jornalista Mendes Oliveira leu alguma vez os artigos em que o tribunal espanhol se baseou para o condenar? Atrevo-me a dizer que não. Aliás, atrevo-me a dizer que nenhum jornalista português (e provavelmente a esmagadora maioria dos jornalistas espanhóis), dos que fizeram sair as notícias sobre a condenação de De Juana por “enaltecimento do terrorismo”, terá lido os artigos. E se por ventura o fizeram, nenhum teve a decência de citar as frases do Gara em que os juízes se basearam para decretar o seu encarceramento por 96 anos. Eu li e também por isso me indigno com a forma irresponsável com que o jornalista da RTP fala em “glorificação do terrorismo”. É que se aquilo é glorificação do terrorismo então vivemos num mundo em que quase todos somos terroristas.
No dia 11 de Março de 2004, aquando do atentado de Atocha, o governo espanhol apressou-se a atribuir a responsabilidade pelas 192 vítimas mortais à ETA. Os meios de comunicação do estado espanhol e um pouco de todo o mundo rapidamente reproduziram essa ideia. Os portugueses não foram excepção.
Dois dias depois do atentado, no País Basco, um padeiro foi morto a tiros por um polícia porque se recusou a colar no vidro do seu estabelecimento um papel das associações espanholas contra a ETA (as tais de que o jornalista fala na peça). Mais tarde, numa manifestação de repulsa pelo assassinato do padeiro, uma mulher de 58 anos caiu no chão inconsciente depois de uma carga policial sobre os manifestantes. Perante a gravidade da situação os companheiros de protesto pediram à polícia que a levasse para o hospital. A resposta que ouviram foi: “não queremos saber”. Ela acabou por morrer.
Estas são as vítimas 193 e 194.
As mãos foram as da polícia.
Os terroristas foram, para além destes, outros.
A RTP ainda é a televisão pública (mesmo que o conceito de televisão pública ande pelas ruas da amargura e seja hoje apenas um bonito termo de marketing que serve para aliviar bolsos e consciências), a televisão de todos os portugueses, todos sem excepção. A RTP não é a televisão dos que apenas partilham a visão do poder (porque lhes convém ou porque se deixaram levar), não é dos “jornalistas” que a usam para veicular os seus ódios políticos ou manifestar subserviência e medo, e muito menos a cadeia de transmissão do governo espanhol. Como povo não podemos tolerar que o nosso mais importante meio de comunicação sirva para acicatar conflitos ao invés de nos informar da verdade.
A RTP deve, no mínimo, um pedido de desculpas à Askatasuna e o compromisso de que tratará a informação sem seguidismos e com rigor.
Irene Sá