segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Baía de Pasaia, a emboscada impune


Emboscada e fuzilamento. Foi com estas palavras que os dois sobreviventes definiram os acontecimentos daquela noite de 1984, em que os focos policiais dissiparam a escuridão e as águas se tingiram de sangue. A investigação reabre-se agora.

Corria o mês de Março de 1984 quando Jose María Izura, Pelu; Pedro María Isart, Pelitxo; Rafael Delas, Txapas; e Dionisio Aizpuru, Kurro, membros dos Comandos Autónomos Anticapitalistas morreram crivados de balas pela Polícia espanhola. Emboscada na baía de Pasaia. Com esta designação passou para a memória colectiva um dos episódios mais negros da história recente de Euskal Herria e um facto que os mais jovens talvez só conheçam através da canção dos Barricada: «Detrás del uniforme queda el anonimato/en el cuartel un brindis/esta vez fueron cuatro» [Por trás do uniforme fica o anonimato/no quartel um brinde/desta vez foram quatro].

Quase 25 anos depois, não foram apuradas responsabilidades sobre aquelas mortes mas existe um raio de luz que ilumina a esperança dos familiares dos falecidos, e a de Joseba Merino e Rosa Jimeno, únicos sobreviventes. É que proximamente os então responsáveis da Brigada de Informação Central e Provincial – de Gipuzkoa – da Polícia espanhola vão prestar declarações.

Depois de três suspensões do caso e meses de inactividade, parece que o processo volta a estar na agenda do Tribunal de Instrução número 2 de Donostia. No entanto, Merino não duvida de que existe um “boicote” a este caso, e refere como dado esclarecedor que passam meses e meses entre cada uma das diligências. O advogado, Santiago Gonzalez, quer mostrar-se mais esperançado e insiste que, “embora pareça difícil, temos a mesma vontade que no princípio de chegar até ao fim”.

Olhando para trás

O GARA reviu o caso com a sua ajuda. Tudo começou a 18 de Março de 1984, quando Rosa Jimeno foi presa pela Polícia espanhola. A detenção ocorreu em Donostia, na praça XII, quando a jovem oriotarra se aproximava do seu veículo. Mas ninguém soube da sua detenção.

Quase 25 anos mais tarde, Jimeno relembra, ainda abalada, aqueles dias. Refere com detalhe como sob tortura, e colocando-lhe uma pistola na nuca, a obrigaram a telefonar para casa e para o trabalho para dizer que não iria aparecer durante uns dias. Os agentes obrigaram-na a usar a desculpa de que tinha que ajudar uma amiga grávida, pelo que estaria alguns dias fora de casa.

Os seus pais conheciam-na demasiado bem para não desconfiarem da chamada. Inclusive dirigiram-se até à esquadra para perguntar pela sua filha, mas a detenção foi registada com uma identidade falsa, pelo que o nome de Rosa Jimeno não figurava ali. “Queriam manter a detenção em segredo... no fim de contas foi um sequestro”, afirma ela e também Joseba Merino.

No momento da detenção, a jovem levava consigo um número de telefone que pertencia à casa de Ziburu em que se encontrava o seu companheiro Dionisio Aizpuru, Kurro. Rosa diz que a tortura da Polícia espanhola não cessou até conseguirem que a jovem combinasse um encontro com Kurro.

Estava já tudo a postos para a emboscada. O encontro tinha sido marcado para 22 de Março, às 22h, nuns rochedos próximos do porto da baía de Pasaia. Três sinais de luz, usando uma lanterna, seriam o combinado para indicar que o lugar “estava limpo”.

No dia 22 de Março, por volta das 19h, os cinco jovens e a cadela de Merino, Beltza, fazem o percurso desde Ziburu numa lancha tipo Zodiac. Todos vestiam fatos salva-vidas, como medida de protecção, o que os impedia de trazer armas por cima.

Quase ao mesmo tempo, Rosa é levada pela Polícia para o sítio combinado. Antes, contudo, ao sair da esquadra pode observar os preparativos da operação. “Havia muito movimento e os polícias, todos com coletes à prova de bala, pegavam em armas atrás de armas... Eu fiquei bastante nervosa e perguntava-lhes, tão inocente, para que queriam aquelas armas, ao mesmo tempo que lhes gritava que me tinham prometido que só os iam prender”, relata, ainda comocionada pela lembrança.

Precisamente quando começa a escurecer, os agentes levam-na até ao lugar combinado. Descem-na até às rochas e atam-lhe as pernas com uma corda. O polícia que segurava a outra ponta da corda, e que a devia puxar, permanece escondido.

Chega a hora e a barca aparece na baía pasaitarra. Os seus cinco tripulantes vêem Rosa ao longe e a lanterna que traz faz o sinal concertado. “Tudo parecia normal e aproximámo-nos”, recorda Merino.

Em poucos segundos a tranquilidade da noite vai desaparecer, a escuridão será dissipada pelos potentes focos da Polícia e o mar tingir-se-á com o vermelho do sangue. Pesem os 24 anos e meio passados, a memória de Merino não conseguiu apagar nem um só detalhe daquela noite e assim o relatou ao GARA.

Era ele que conduzia a embarcação. Já com o motor em ponto morto e as amarras lançadas, todos os militantes se preparam para desembarcar. Os primeiros a descer da zodiac são Pelitxo e Kurro, que conseguem aproximar-se de Rosa e ficar junto dela. O terceiro a descer será Joseba Merino... mas já não há tempo para mais.

Segundo relata, encontrava-se inclinado, a pegar na sua cadela para a passar a Kurro, que esperava já do outro lado. “Então – prossegue –, pudemos ver como se retesava uma corda que imobilizava a Rosa e como ela caía subitamente no chão. Foi nesse momento que se ouviu um ‘Alto, Polícia!’ e tudo ficou iluminado. De seguida, sem haver tempo para nada, ouviu-se um disparo isolado, e logo uns 20 txakurras [cães, no caso, polícias], ou mais, começaram a disparar”.

Merino relata que tanto ele como Txapas e Pelu, que ainda se encontravam na embarcação, saltam para a água para se proteger dos disparos. Na primeira rajada, no entanto, já caem mortos dois dos militantes dos Comandos Autónomos Anticapitalistas: Pelitxo, que estava em solo firme; e Pelu, na água.

Assim que as armas se silenciaram duas embarcações da Guarda Civil – corpo responsável pelas actividades subaquáticas e que apoia a operação – começam a aproximar-se desde o outro lado, desde Pasai San Pedro. Merino recorda que os botes contavam com potentes focos para a busca.

Apesar de nadar umas braçadas debaixo de água e conseguir esconder-se entre umas rochas, Merino indica que a sua tentativa é inútil: “Localizaram-me com as metralhadoras e fizeram-me sair da água, subir para as rochas e pôr as mãos sobre a cabeça, junto a Pelitxo”, refere.

Poucos minutos passados, segundo recorda o donostiarra, uma embarcação da Guarda Civil traz Txapas, que também obrigam a subir às rochas, ao pé deles.

Os três permanecem com as mãos na cabeça até que um agente os obriga a identificar-se. Merino recorda que foi depois de dar o seu nome que o afastaram dos seus companheiros. “Os polícias estavam muito nervosos, e, com insultos e ameaças, disseram-se que me afastaria uns metros”, rememora. Precisamente nesse momento, segundo relata, três polícias vestidos à paisana aproximam-se de Txapas e Pelitxo: “Ficaram a menos de um metro e levavam duas metralhadoras – uma Ingram 10 e uma UZI – e uma espingarda”, precisa. Merino indica que os seus companheiros não articularam uma palavra nem fizeram qualquer movimento: “Só se ouviu ‘vão morrer’... e abriram fogo”.

Merino sublinha que não esperava tal coisa. “Por essa alturas imaginávamo-nos presos, torturados e muitos anos na prisão, mas não pensávamos que podíamos morrer daquela maneira”, ressalta.

Os corpos sem vida dos dois jovens sucumbem e caem à ria pela força das balas que os atingem. A Merino, custa-lhe conter a emoção: “Tinham fuzilado os meus companheiros, foram muitas as balas que atingiram os seus corpos”. Dias depois, a autópsia contaria 113 projécteis encontrados nos corpos sem vida dos quatro militantes dos Comandos Autónomos Anticapitalistas.

Consumados os fuzilamentos, Merino recorda que foi arrastado por um caminho, onde o algemaram. Ali pôde observar um casal que também estava retido pela Polícia. Depois soube que estavam a passear por ali no momento em que a polícia tomava a zona e que tinham sido retidos antes da emboscada, para evitar qualquer fuga de informação.

Rosa Jimeno, por seu lado, não pode ver nada, já que continua retida, de pistola apontada, de boca para baixo. Entra em grave estado de choque mal ouve os disparos, e desata a gritar. Perto do local onde se encontra, vão-se juntando os curiosos. A escuridão e a localização afastada do enclave não lhes permite ver os acontecimentos, mas podem lançar o alerta sobre a situação em que Rosa se encontra. Os vizinhos chegam a pedir aos polícias, que mantêm o acesso cortado, uma ambulância para que a jovem receba assistência.

Quando tudo acaba, duas viagens de lancha transportam os quatro detidos, Merino, Jimeno e o casal de testemunhas, para o outro lado da costa, situada em Pasai San Pedro.

Os corpos sem vida dos quatro jovens são transportados para o Comando da Marinha, onde permanecem até serem levados para o depósito de cadáveres do cemitério donostiarra de Polloe. Desta forma, passa-se por cima do procedimento judicial regular, que estabelece que o levantamento dos cadáveres deve ser feito no lugar dos factos por um juiz forense, para esclarecer, mediante um processo de investigação, os motivos do falecimento.

A Rosa, levam-na directamente para a esquadra da Polícia espanhola em Donostia. No dia seguinte é transferida para Madrid, e, depois de 11 dias sob incomunicação, passa pela Audiência Nacional espanhola. Passa todo o período de incomunicação perguntando pelo estado dos seus companheiros. Asseguram-lhe que estão vivos. Não saberia a verdade até chegar à prisão, onde permaneceu mais de três anos.

Oihana LLORENTE

Ver ainda, na continuação deste texto, em castelhano: «Uma operação bem montada», «“Vingança” pela morte de Casas» e «Um processo interminável»
Fonte: Gara