Em jeito de balanço do ano que caminha para o seu termo, Alvarez-Solís considera que este foi “um mau ano”. Para além das crises políticas e económicas, o jornalista madrileno vê na «doutrina Parot» a evidência da dissolução da justiça, mesmo no sentido limitado que tinha até agora. Por isso conclui que “o regresso à história anterior à Revolução Francesa ocorre com toda a nitidez”.
Foi um mau ano, o que acaba. Durante o seu transcurso derrubaram-se muitas estruturas morais edificadas com sangue, suor e lágrimas ao longo de dois séculos. Está-se a afundar o estado do bem-estar, naufraga a economia de mercado, desaparece o Direito internacional, deixam de reger os respeitos da cidadania, as normas laborais tornam-se irracionais, quebram-se as cautelas na administração da justiça, o ar da democracia rarefaz-se, rasgam-se violentamente as veladuras próprias da liberdade, retorna o poder ao exercício de cínicas brutalidades, corrompe-se a linguagem, conformam-se as consciências...
Um mau ano fechado com uma chave apócrifa.
Talvez o mais grave seja o desaparecimento da justiça como pretensão de amparo. Um desaparecimento radical, escandaloso. Sobretudo, abrupto. Os tribunais sempre infundiram temor aos cidadãos como instrumentos de classe, mas neles, e falo desses dois últimos séculos, branqueava-se de algum modo o constante agravo forense dos poderosos aos mais fracos. Os hierofantes explicavam o seu papel. Não se administrava justiça verdadeira, mas lia-se as leis com uma certa elegância. Os tribunais eram essa reverência feita aos que nada podem por parte de quem pode tudo. O engano era prudente e as sentenças emanavam com uma cadência medida. O Estado enaltecia-se com o sum cuique tribuere, o dar a cada um o seu, cerne da justiça distributiva. Depois o Estado era de quem era, mas procurava retribuir-nos com uma pretensa igualdade.
Que foi de tudo isto que constituiu uma espécie de pacto para que uns matassem com cartilha de urbanidade e outros morressem com a esperança na sua luta pelo progresso humano? Nem sequer sobreviveu o estilo. A violência do poder não se veste hoje com a pretensão das ideias, ainda que sejam maliciosas, mas com o andrajo imundo da necessidade administrativa. Maquiavel já não é o fino e retórico depositário de uma trabalhada pretensão utilitária mas antes um falsificador suburbano de identidades. Custa muito para quem dedicou a sua vida a um combate com armas limpas ver-se no ringue emporcalhado de uma batalha repugnante. Com Shakespeare “a reputação é o alívio dos tontos”, mas a que chamamos agora reputação? Como se adquire e de quem é alívio? Não de tontos, certamente.
Possivelmente, a estocada final dada a uma justiça pretensamente discreta e com oficio de majestade nos juízes tenha acontecido com a «doutrina Parot», que procura converter os benefícios penitenciários numa nova fonte de escândalo. A «doutrina Parot» transforma a pena ditada numa decisão viciosa por elástica, que pode ser utilizada pelos juízes até lograr de facto a pena perpétua, que inclusive já não se encontra no limite cruel dos trinta anos mas nos quarenta, por ter substituído significativamente a pena de morte, mas de uma morte ainda mais grave que a física no patíbulo, porque falamos de uma morte de desestruturação do indivíduo, de esvaziamento da sua alma. É a tortura final que, tantas vezes, sucede à tortura primeira numa época que regressou às piores lonjuras da história. Acerca deste tipo de penas, escutemos as palavras da magistrada Garbiñe Biurrun, do Tribunal Superior de Justiça do País Basco, que fala com uma difícil transparência: “Quando o preso cumpriu entre 15 e 20 anos de prisão, a sua personalidade desestrutura-se psicologicamente, perdendo valores e a noção da realidade. Isto atenta muito gravemente contra a dignidade da pessoa. Trata-se de uma pena desumana”. E acrescenta, a brilhante e equilibrada juíza: “Na minha opinião é evidente que os critérios jurídico-penais que a Audiência Nacional está a utilizar são muito regressivos e perigosos”.
Isto é, mais uma vez voltamos a falar de tortura. Pode-se conceber neste momento, e com isso abre-se melancolicamente o ano novo e quase o século; pode-se conceber que tenhamos retrocedido aos tempos da tortura como procedimento inquisitorial e base frequente da administração de justiça? É inútil que as autoridades políticas, como são no Estado espanhol as representadas nos Governos do PP ou do PSOE, desmintam a existência de uns protocolos fácticos de tortura. Tortura física, insuportável, ou tortura psicológica, também intolerável. Essas torturas existem em muitos casos. E são sempre negadas. São torturas que começam nas detenções fora do âmbito físico policial e continuam, como vimos, na aplicação das penas. Não se trata já de acusar, porque o mundo admite esses procedimentos, mas de apreciar o dano social e moral que as torturas produzem no tecido da cidadania, que se degrada por um mecanismo de contaminação. Se tortura a autoridade, e agora falo do mundo, por que não há-de torturar o indivíduo que tem capacidade material para o fazer? Envenenaram a água e desse rio bebemos todos. A sociedade está-se a degradar até ao extremo de o vice-presidente ou o secretário da Defesa norte-americanos, fazendo resguardo de memória no que se refere ao protagonista das declarações, ter chegado a afirmar que o uso do saco para provocar a asfixia no detido não causava danos sensíveis e encurtava o interrogatório. Monstruosidade tremenda!
Mas voltemos à «doutrina Parot» e a reflectir sobre algumas das suas consequências. Da aplicação da «doutrina Parot» podem deduzir-se algumas escandalosas consequências.
Primeira – A pena ditada depois da audiência oral fica praticamente imprestável se aceitarmos que a sua aplicação pode ser agravada pela administração penitenciária mediante manipulações como um castigo variado aos presos e pela incerteza com que a concessão dos benefícios penitenciários pode ser aplicada pelos juízes.
Segunda – A «doutrina Parot» destrói o carácter literal da sentença que fixa o encarceramento efectivo num determinado número de anos; encarceramento que pode ir até aos trinta ou quarenta se os magistrados decidem aplicar o castigo substitutivo da pena de morte.
Terceira – A aplicação dos critérios Parot invalida a segurança processual ao deixar a sua culminação, que é a pena, num horizonte inconcreto e, portanto, do qual se pode dificilmente recorrer.
Quarta – A «doutrina Parot» declara subjacentemente que na finalidade da pena não entra a possível redenção do delinquente mas um espírito de vingança tão visível como primitivo.
Talvez de todos estes pontos convenha deduzir a invalidez do processo como veículo para estabelecer solidamente a pena. O encarceramento do suposto delinquente ficará dependente de muitos acasos, a começar no peso absurdo das actas policiais como prova em julgamento e a terminar na sentença repleta de névoa no que respeita à sua duração efectiva. O que parece evidente é que os tribunais perdem o seu valor de independência para retornar à realidade dos juízes reais que, ao dependerem da vontade mutável do soberano, convertiam a pena num simples castigo emanado da vontade julgadora, sem que as leis servissem de rumo com qualquer validade. Em resumo, pode-se afirmar que o regresso à história anterior à Revolução Francesa ocorre com toda a nitidez.
E então, face a este panorama, o que têm a dizer os parlamentos, os governos e a magistratura? Pois nada dizem.
Pela nossa parte, zorionak eta Eguberri on [felicidades e bom Natal].
Antonio ALVAREZ-SOLÍS
jornalista
Foi um mau ano, o que acaba. Durante o seu transcurso derrubaram-se muitas estruturas morais edificadas com sangue, suor e lágrimas ao longo de dois séculos. Está-se a afundar o estado do bem-estar, naufraga a economia de mercado, desaparece o Direito internacional, deixam de reger os respeitos da cidadania, as normas laborais tornam-se irracionais, quebram-se as cautelas na administração da justiça, o ar da democracia rarefaz-se, rasgam-se violentamente as veladuras próprias da liberdade, retorna o poder ao exercício de cínicas brutalidades, corrompe-se a linguagem, conformam-se as consciências...
Um mau ano fechado com uma chave apócrifa.
Talvez o mais grave seja o desaparecimento da justiça como pretensão de amparo. Um desaparecimento radical, escandaloso. Sobretudo, abrupto. Os tribunais sempre infundiram temor aos cidadãos como instrumentos de classe, mas neles, e falo desses dois últimos séculos, branqueava-se de algum modo o constante agravo forense dos poderosos aos mais fracos. Os hierofantes explicavam o seu papel. Não se administrava justiça verdadeira, mas lia-se as leis com uma certa elegância. Os tribunais eram essa reverência feita aos que nada podem por parte de quem pode tudo. O engano era prudente e as sentenças emanavam com uma cadência medida. O Estado enaltecia-se com o sum cuique tribuere, o dar a cada um o seu, cerne da justiça distributiva. Depois o Estado era de quem era, mas procurava retribuir-nos com uma pretensa igualdade.
Que foi de tudo isto que constituiu uma espécie de pacto para que uns matassem com cartilha de urbanidade e outros morressem com a esperança na sua luta pelo progresso humano? Nem sequer sobreviveu o estilo. A violência do poder não se veste hoje com a pretensão das ideias, ainda que sejam maliciosas, mas com o andrajo imundo da necessidade administrativa. Maquiavel já não é o fino e retórico depositário de uma trabalhada pretensão utilitária mas antes um falsificador suburbano de identidades. Custa muito para quem dedicou a sua vida a um combate com armas limpas ver-se no ringue emporcalhado de uma batalha repugnante. Com Shakespeare “a reputação é o alívio dos tontos”, mas a que chamamos agora reputação? Como se adquire e de quem é alívio? Não de tontos, certamente.
Possivelmente, a estocada final dada a uma justiça pretensamente discreta e com oficio de majestade nos juízes tenha acontecido com a «doutrina Parot», que procura converter os benefícios penitenciários numa nova fonte de escândalo. A «doutrina Parot» transforma a pena ditada numa decisão viciosa por elástica, que pode ser utilizada pelos juízes até lograr de facto a pena perpétua, que inclusive já não se encontra no limite cruel dos trinta anos mas nos quarenta, por ter substituído significativamente a pena de morte, mas de uma morte ainda mais grave que a física no patíbulo, porque falamos de uma morte de desestruturação do indivíduo, de esvaziamento da sua alma. É a tortura final que, tantas vezes, sucede à tortura primeira numa época que regressou às piores lonjuras da história. Acerca deste tipo de penas, escutemos as palavras da magistrada Garbiñe Biurrun, do Tribunal Superior de Justiça do País Basco, que fala com uma difícil transparência: “Quando o preso cumpriu entre 15 e 20 anos de prisão, a sua personalidade desestrutura-se psicologicamente, perdendo valores e a noção da realidade. Isto atenta muito gravemente contra a dignidade da pessoa. Trata-se de uma pena desumana”. E acrescenta, a brilhante e equilibrada juíza: “Na minha opinião é evidente que os critérios jurídico-penais que a Audiência Nacional está a utilizar são muito regressivos e perigosos”.
Isto é, mais uma vez voltamos a falar de tortura. Pode-se conceber neste momento, e com isso abre-se melancolicamente o ano novo e quase o século; pode-se conceber que tenhamos retrocedido aos tempos da tortura como procedimento inquisitorial e base frequente da administração de justiça? É inútil que as autoridades políticas, como são no Estado espanhol as representadas nos Governos do PP ou do PSOE, desmintam a existência de uns protocolos fácticos de tortura. Tortura física, insuportável, ou tortura psicológica, também intolerável. Essas torturas existem em muitos casos. E são sempre negadas. São torturas que começam nas detenções fora do âmbito físico policial e continuam, como vimos, na aplicação das penas. Não se trata já de acusar, porque o mundo admite esses procedimentos, mas de apreciar o dano social e moral que as torturas produzem no tecido da cidadania, que se degrada por um mecanismo de contaminação. Se tortura a autoridade, e agora falo do mundo, por que não há-de torturar o indivíduo que tem capacidade material para o fazer? Envenenaram a água e desse rio bebemos todos. A sociedade está-se a degradar até ao extremo de o vice-presidente ou o secretário da Defesa norte-americanos, fazendo resguardo de memória no que se refere ao protagonista das declarações, ter chegado a afirmar que o uso do saco para provocar a asfixia no detido não causava danos sensíveis e encurtava o interrogatório. Monstruosidade tremenda!
Mas voltemos à «doutrina Parot» e a reflectir sobre algumas das suas consequências. Da aplicação da «doutrina Parot» podem deduzir-se algumas escandalosas consequências.
Primeira – A pena ditada depois da audiência oral fica praticamente imprestável se aceitarmos que a sua aplicação pode ser agravada pela administração penitenciária mediante manipulações como um castigo variado aos presos e pela incerteza com que a concessão dos benefícios penitenciários pode ser aplicada pelos juízes.
Segunda – A «doutrina Parot» destrói o carácter literal da sentença que fixa o encarceramento efectivo num determinado número de anos; encarceramento que pode ir até aos trinta ou quarenta se os magistrados decidem aplicar o castigo substitutivo da pena de morte.
Terceira – A aplicação dos critérios Parot invalida a segurança processual ao deixar a sua culminação, que é a pena, num horizonte inconcreto e, portanto, do qual se pode dificilmente recorrer.
Quarta – A «doutrina Parot» declara subjacentemente que na finalidade da pena não entra a possível redenção do delinquente mas um espírito de vingança tão visível como primitivo.
Talvez de todos estes pontos convenha deduzir a invalidez do processo como veículo para estabelecer solidamente a pena. O encarceramento do suposto delinquente ficará dependente de muitos acasos, a começar no peso absurdo das actas policiais como prova em julgamento e a terminar na sentença repleta de névoa no que respeita à sua duração efectiva. O que parece evidente é que os tribunais perdem o seu valor de independência para retornar à realidade dos juízes reais que, ao dependerem da vontade mutável do soberano, convertiam a pena num simples castigo emanado da vontade julgadora, sem que as leis servissem de rumo com qualquer validade. Em resumo, pode-se afirmar que o regresso à história anterior à Revolução Francesa ocorre com toda a nitidez.
E então, face a este panorama, o que têm a dizer os parlamentos, os governos e a magistratura? Pois nada dizem.
Pela nossa parte, zorionak eta Eguberri on [felicidades e bom Natal].
Antonio ALVAREZ-SOLÍS
jornalista