Quando os meus colegas de curso me perguntam que diferenças sinto em relação à minha terra, depois de falar brevemente sobre o nosso pão, o nosso clima e a nossa maneira de estar, explico que nós tivemos uma Revolução, na verdadeira acepção da palavra e não uma nova ditadura disfarçada de transição. Conto que no meu país (por enquanto) não corro o risco de ser preso por militar num partido, nem de ser torturado por escrever para um jornal, nem ser espancado se participar numa manifestação. Aos meus colegas, todos da minha idade, falo-lhes de um tempo que não conheci, em que havia presos políticos, tortura, detidos em incomunicação, repressão nas ruas e partidos ilegalizados. Falo-lhes de histórias que não vivi pessoalmente, de que apenas pude ouvir falar e conhecer pelos livros. Os meus colegas falam-me exactamente do mesmo, mas aplicado ao dia de hoje e à nossa sala de aula. Só na minha universidade, estão presos três professores catedráticos e cerca quinze estudantes. Em demasiados bairros há presos políticos. Em demasiadas famílias há um parente que está preso, em demasiados grupos de amigos, há um que falta. Espanha é o nome de uma enorme prisão em que falta demasiada liberdade.
Com o tempo, vou-me desabituando das liberdades políticas que tenho em Portugal: frequentemente, amigos repreendem a minha ingenuidade quando falo em público sobre política[1] ou refiro pelo nome, alguém e a sua organização. E com o tempo vou-me habituando a que me tirem o telemóvel antes das reuniões ou
à ideia de que uma opinião política pode valer anos de cadeia.
É esta atmosfera democraticamente rarefeita que se respira também na Universidade do País Basco (EHU):
Para que se entenda melhor como é o dia a dia nesta universidade, deixo-vos o relato do que se passou há cerca de um mês, numa manhã em que ia para a faculdade:
Vou sentado na traseira de um autocarro apinhado de jovens com ar punk que falam surpreendentemente de política e cantam canções revolucionárias. Sinto-me em casa. Subitamente, em plena auto-estrada a caminho da faculdade, o autocarro começa a parar. Ao princípio não consigo perceber o que se passa, mas à minha volta instala-se o nervosismo, trocam-se palavras rápidas, mexe-se nas mochilas e finalmente a porta do autocarro abre-se e um ertzaintza entra. De repente, reina um silêncio gélido. Só se ouvem as botas do polícia, de arma a tiracolo, que avança devagar pelo meio das fileiras de assentos. Vai olhando pausadamente para a cara de cada um dos passageiros. Um jovem uns lugares à minha frente, olha para a janela quando o soldado passa. O ertzaintza agarra-lhe o crânio com a palma da mão e roda-lhe a cabeça com brutalidade. Lá fora, na estrada, há outros carros parados e alguns jovens encostados à parede. O agente, fardado de elefantismo policial, acaba por sair. Desta vez, não encontrou quem procurava.
Mas é preciso muito mais para derrubar a moral de um basco. Esta juventude cresceu a ver os seus amigos serem presos, sofrendo cargas policiais, perseguições judiciais, censura e todo tipo de ameaças. Mal o autocarro arranca, já tudo transborda de risos e ofensas aos polícias que vão ficando para trás. A juventude basca possui todo um dicionário ofensivo para se dirigir à autoridade: txakurras, pikoletos, zipaios, maderos ou beltzas, são só alguns dos que consigo distinguir.
À entrada da faculdade, todos os dias cumprimento um grupo de ex-professores catedráticos, despedidos pelas suas ideias políticas e que estão há anos, todos os dias à porta da universidade para denunciar a sua situação.
No interior, a faculdade transpira política: todos os dias grupos de jovens ligados ao sindicato estudantil Ikasle Abertzeleak empapelam a Universidade com cartazes, faixas, autocolantes ou pinturas e todos os dias há brigadas de limpeza para remover tudo sob um conceito pidesco de higiene política.
Entre os alunos, maioritariamente apoiantes da esquerda abertzale, e a direcção da Universidade há uma tensão palpável, por vezes essa tensão transforma-se em repressão e em minutos, como que por magia, o recinto enche-se de seguranças e ertzaintzas que quais alienígenas, se passeiam de departamento académico em departamento académico; de arma em punho, cara tapada, escudo em riste e capacete vermelho. Outras vezes, passa-se o que se passou a 20 de Maio e a polícia faz mais que se passear: carrega contra os estudantes, abrindo cabeças a bordoadas e levando alunos presos. Porque não se fala desta violência no meu país? Porque será que os mesmos que se comovem com a repressão dos manifestantes birmaneses ou aplaudem os motins tibetanos se calam perante a tortura institucionalizada e legalmente coberta de dissidentes bascos? Como se explica o duplo critério dos que choram tantas lágrimas de crocodilo pelos cerca de 50 presos “políticos” cubanos mas que nunca se atrevem a denunciar a situação dos cerca de 750 presos políticos bascos (o número mais alto desde a morte física de Franco) e a desumana situação a que estão submetidos? Porque será que as lágrimas de um timorense ou um angolano valem mais que as de um basco?
Que não se interprete mal o desejo de independência do povo basco, não se baseia em qualquer birra chauvinista ou qualquer tipo de fanatismo político. Este nacionalismo (palavra de significado tão duvidoso para nós…) não se baseia na negação do outro mas unicamente na defesa da sua própria identidade. Porque não podem ser bascos dentro de Espanha? Porque não podem estar unidos e em paz no reino de Juan Carlos? Pela mesma razão que Angola não queria estar unida a Portugal: angolanos são angolanos e bascos são bascos. As feridas causadas pelo Estado espanhol nunca cicatrizaram neste país dos Pirenéus. Essas marcas de sofrimento, essas efemérides sangrentas convertidas em imagens fixas e pulsantes ainda ferem a memória dos bascos.
Para compreender porque existe luta armada no País Basco, há que falar com os bascos. Antes de qualquer consideração pessoal sobre a violência, parece-me importante distinguir entre agredido e agressor. Quem teria a hipocrisia de afirmar que nega a violência em qualquer situação, mesmo em autodefesa? Por outro lado, creio que nos devemos perguntar se reconhecemos o direito à utilização da violência quando não sobram vias democráticas e pacíficas. Terá um povo amordaçado o direito de se libertar utilizando os únicos meios disponíveis? Que se deve fazer quando os partidos políticos são proibidos, as manifestações reprimidas com barbaridade, os dirigentes políticos cruelmente torturados e os autarcas democraticamente eleitos, encarcerados? Que alternativas restam aos povos quando as suas esperanças não cabem na pequenez das urnas de voto?
Esta é uma questão incómoda que o sistema tornou tabu. Uma resposta comum que o sistema nos tenta inculcar é dizer: “há que buscar alternativas, mas a violência nunca é a solução.”. Mas quais são essas alternativas, estes magos do politicamente correcto guardam para si próprios. Este nininismo, este dizer “nem um nem outro” vazio e esta fuga à realidade para o vácuo político não é mais que um caminho infértil para a perpetuação da realidade social. O seu objectivo é banir qualquer possível discussão sobre a legítima utilização da violência com uma capa burguesa de dogmatismo e etiqueta política. A imagem de uma sociedade intelectualmente plural mantém-se abrindo ao máximo o leque de divergência e liberdade opções dentro das possibilidades reformistas do sistema banindo toda e qualquer discussão sobre mudança estrutural e os seus meios.
Pois bem, desde que estou aqui em Bilbau, vi a polícia carregar e espancar manifestantes pacíficos, vi gente privada do direito de votar na sua opção política, vi um amigo ser preso, vi centenas de familiares exigindo que tratem os seus parentes presos com humanidade. Falei com um antigo preso político, que depois de 20 anos preso, foi de novo encarcerado, para cumprir prisão perpétua sob a legislação da doutrina Parot.
Então não me custa dizer que os chamados terroristas bascos, digo-o bem alto, são tão terroristas como os guerrilheiros do MPLA, ou os resistentes franceses à ocupação nazi. Também esses foram em tempos chamados de terroristas, essa palavra tão cheia de normatividade e tão esvaziada de conteúdo. Os terroristas de uns são os libertadores de outros.
Nestes dias do princípio de Junho, Bilbau está cheia de cartazes, faixas, murais e flores em homenagem a vários militantes da ETA. Hoje à tarde, (6 de Junho) na principal praça desta cidade, realizou-se uma homenagem pública a dois deles, falecidos este ano. Nas janelas floridas, ondulam bandeiras que pedem a repatriação dos presos políticos e na praça cheia de gente e por entre os punhos erguidos como lanças, alguém faz um discurso exaltado em euskera, referindo várias vezes os nomes dos gudaris. E as palmas não cessam. Acompanham todo o discurso e ganham nova intensidade quando se ouve outro nome. E nem o aparato policial nem o frio de Bilbau, nem esta chuvinha irritante (a que os bascos chamam carinhosamente de xirimiri) as faz parar. Que força é essa? São às centenas os jovens bascos que pela sua militância política terminam nas cadeias espanholas. Que força é essa?...
Bem, Jean Paule Sartre dizia que os revolucionários estão condenados a conviver com a ilegalidade. Eu recordo-me de uma canção basca que de uma forma tão simples resume a teoria do filósofo… a letra diz: “se eu lhe tivesse cortado as asas / não teria escapado / ainda seria meu / mas já não seria um pássaro / e eu… eu amava o pássaro.” Porque é que são tantos os jovens, cultos, informados e inteligentes que optam por arriscar perder a juventude na prisão ou mesmo perder a vida pela libertação da sua pátria? Porque não se contentam com uma vida “normal” afastada da política e dos sonhos? Pela mesma razão. Porque são pássaros.
E agora, que estou perto do dia em que regressarei a Portugal, contam-me, entredentes, que P., um amigo daqui, está a arriscar-se a que a Guardia Civil lhe bata à porta uma noite destas. E não posso deixar de me perguntar… que faria eu se prendessem este meu companheiro? Que faríamos nós perante uma situação de injustiça? Que farás tu, quando uma destas noites vierem para te levar?
A violência da ETA é uma resposta a uma outra violência, mais brutal e muito mais antiga. E não há manipulações propagandísticas orquestradas pelos meios de comunicação dominantes que possam negar a História. A saga deste povo, arrastado durante séculos pelas historiografias de outras nações, é o combate entre o heróico esforço dos fracos e oprimidos para se levantarem do chão e a vontade sangrenta dos mais fortes e mais poderosos para se manterem nessa posição. Nesse aspecto, não há assim tantas diferenças entre bascos, portugueses ou qualquer outro povo do mundo.
Bidasoa é o nome de um rio. Em euskera arcaico, e numa tradução deveras livre, pode significar “a caminho para algo”. Nascido nos Pirenéus navarros, cruza a Guipuzcoa e antes de desembocar no Mar Cantábrico, serve de fronteira entre os Estados espanhol e francês.
Embora hoje em dia este rio seja partilhado por três regiões administrativas e dividido por dois Estados diferentes, nem sempre foi assim. Ainda muito antes da existência de qualquer Estado, no ano de 611, Recadero, rei visigodo, ao percorrer as margens do Bidasoa, escreveu: “dos dois lados deste rio vive um povo trabalhador, misterioso, inquieto e turbulento. São diferentes do resto dos hispanos pela sua língua, costumes e religião. São bascos”.
Quarenta anos mais tarde em 650, o Bidasoa via nascer o primeiro reino cristão da Europa, o Ducado da Vascónia. Seria o primeiro de muitos nomes para a Terra dos Bascos, Euskal Herria. Uma interminável necrologia de guerras partiu esta terra em pedaços, despedaçou a sua cultura à força de leis estrangeiras, impôs bandeiras e baniu idiomas e ditou fronteiras. No entanto, nem o fim dos reinos bascos, nem a abolição dos seus foros, nem tampouco a proibição de falar euskera ou as bombas de Hitler puderam suprimir o povo basco. E ao longo de todos os séculos, de todas as humilhações, de todas as guerras perdidas, podemos sempre encontrar o povo basco no mesmo lugar: em Euskal Herria, a terra dos bascos, a oeste na Europa, a norte na Península Ibérica e sempre sob as botas dos invasores.
Hoje em dia, apesar de toda a repressão e vontade de aniquilar a sua identidade, o povo basco continua a sentir-se basco. À realidade cega e imutável dos Estados e do Capital, o povo basco responde construindo, no dia a dia, uma outra realidade: a sua nação. Ao cruzar a pequena ponte sobre o rio Bidasoa, que separa o País Basco espanhol do País Basco francês, um desfile independentista em que participo transforma em fantasia essa fronteira, que por momentos se esfuma numa simples linha, possível de imaginar mas impossível de sentir.
Mas há que percorrer todo o caminho do rio Bidasoa para descobrir para onde vão os bascos. Algures na sua foz, encontramos a Ilha dos Faisões, pequeníssimo ilhéu fluvial, situado precisamente naquilo que deveria ser a fronteira física entre os dois Estados. A quem pertence este pequeno pedaço de terra? Após seis séculos de intermináveis discussões, a minúscula e inabitada ilha dos faisões continua a não ser território de França nem de Espanha pelo que é administrada através de um condomínio tão complexo como ridículo.
Teimosamente, cidadãos de um povo sem Estado, insistem em ir plantar ilegalmente nesta pequena ilha, igualmente sem Estado, a bandeira de um país que não existe. Pelo menos nos mapas oficiais do capitalismo.
Bela alegoria do que é na verdade o Euskal Herria, a geografia da Ilha dos Faisões estende-se muito para além dos seus 2000 metros quadrados.
Há uma Ilha dos Faisões no coração de cada basco, que se nega a ser francês ou espanhol e se afirma, única e somente Basco.
É a tenacidade na luta pela liberdade que mantém o povo basco, sendo basco. É a sua espantosa capacidade auto-organizativa, que permite às organizações da esquerda independentista reerguerem-se do chão após cada ofensiva repressiva, após cada vaga de detenções. É esta admirável convicção dos bascos, que lhes permite opor aos mapas do capitalismo, fronteiras populares, verdadeiras muralhas de resistência e dignidade. É a inigualável criatividade da causa basca que lhes permite opor à geografia global do capitalismo, hegemónica e agressiva; novas geografias de solidariedade e internacionalismo. É a inabalável fé do povo basco na sua vontade de decidir o seu futuro, que lhe permite opor ao calendário global de pessimismo e apatia, um calendário de esperança na humanidade: o socialismo.
Quem não ajudará a cantar as suas canções de liberdade? Quem pode deixar de sentir simpatia com a causa deste povo milenar que luta pelo direito de ser e que não fecha os olhos na escuridão? Deixo em Euskal Herria uma parte do meu coração. Este povo de gente corajosa e generosa é uma lição para todos os que lutam, em todas as partes do mundo. A persistência das suas gentes, que se negam a viver subjugadas é uma lição viva de dignidade e heroísmo. Regresso a Portugal para contar que durante estes meses, nunca vivi ou estudei em Espanha. Isso seria mentir. Eu vivi em Euskal Herria. E no futuro, continuarei a ajudar a construí-la. Afinal, também me ensinaram que Solidariedade, em euskera, diz-se Alkartasuna.
Eu, estudante português na Universidade do País Basco, denuncio o Estado de Excepção que oprime o povo de Euskal Herria.
Acuso o Estado espanhol de crimes contra a humanidade. Acuso este Estado, de sistematicamente atropelar os mais elementares direitos humanos.
Denuncio a hipocrisia e a cumplicidade da sociedade internacional e em particular a ONU e a UE, que tão facilmente falam da falta de liberdade na Turquia ou na Birmânia e que se calam perante o ambiente democraticamente rarefeito que se respira em Euskal Herria.
Denuncio que aqui a tortura é impune e institucionalizada, como já foi reconhecido pela Amnistia Internacional, pela Human Rights Watch, pelo Comité Europeu para a Prevenção da Tortura, pelo Relator da ONU contra a Tortutra e por outras 37 organizações não-governamentais.
Denuncio que aqui se ilegalizam partidos políticos, se encerram jornais e se censuram artistas.
Denuncio que aqui, ao melhor estilo fascista, se reprimem brutalmente manifestações pacíficas e se perseguem cidadãos unicamente pelos seus ideais e convicções.
Denuncio a situação intolerável dos mais de 750 presos políticos bascos, entre os quais se encontram colegas, professores universitários da instituição que me acolhe, dirigentes de associações juvenis e estudantis, sindicalistas, músicos e artistas, etc. muitos deles condenados a prisões perpétuas, em regime de isolamento e cruelmente afastados dos seus locais de origem, nalguns casos a milhares de quilómetros das suas famílias.
Denuncio que só em 2007, registaram-se 490 detenções políticas das quais 209 resultaram em pena de prisão, 123 proibições de actos públicos, 97 cargas policiais, 42 denúncias de tortura, 2155 controlos de estrada por motivos políticos, 148 feridos em manifestações e 1 morto pela dispersão.
Acuso o Estado espanhol, Zapatero e o seu rei, de terrorismo de Estado e crimes contra a humanidade. Acuso este Estado Policial, de sistematicamente atropelar os mais elementares direitos humanos.
Acuso este Estado torturador e carcereiro, de não querer somente aniquilar a esquerda independentista, mas toda uma cultura, uma identidade, um povo e uma nação, no sentido mais lato da palavra.
Chegou a hora de nós, povos e juventudes do mundo, denunciarmos os crimes deste Estado terrorista contra o povo basco. Se os Estados se calam, chegou a hora de falarem os povos.
Contra o muro de silêncio e desinformação, ergueremos uma invencível muralha de solidariedade internacionalista. A mesma muralha de ideias e povos, que um dia não deixou passar impunes os crimes contra o Vietname, Timor-Leste ou mais recentemente o Iraque. Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar.
Pelo direito à autodeterminação
Por uma paz baseada na justiça e na livre decisão dos povos
Pela libertação imediata de todos os presos políticos bascos
Contra a repressão, as ilegalizações e as detenções
Em solidariedade com o povo basco, a esquerda independentista e TODAS as suas organizações*
A.
Estudante de Internacionalismo em Euskal Herria
*um abraço em especial para os camaradas da Askapena pelo acolhimento caloroso, a paciência e a disponibilidade para ensinar e explicar.
Estou certo que da parte dos solidários portugueses, poderão também sempre contar com a mesma firmeza e a mesma ternura, nas acertadas palavras do Che.
[1] Segundo as estatísticas do Governo Basco, mais de 70% dos bascos sentem medo de falar de política abertamente