quinta-feira, 5 de junho de 2008

Os GAL vestem a toga

Juan Mari ZULAIKA

Ninguém duvida que os GAL (Grupos Antiterroristas de Libertação) sejam um exemplo paradigmático do terrorismo de estado. No pós-franquismo pulularam grupos armados, sempre apoiados no contexto das Forças de Segurança. Gostavam de se auto-etiquetar como antiterrorismo. À cabeça, os GAL, organização criada pelas altas instâncias do Governo de Felipe González e sufragada generosamente pelos Fundos de Reserva do Estado. Num período de quatro anos executou 27 assassinatos, além do rapto amador de Marey (1). Mas os responsáveis não eram os polícias Amedo e Domínguez, nem os seus comandos intermédios, todos eles mercenários bem pagos; executavam ordens de autoridades políticas que iam desde Damborenea, secretário do PSE, e Sancristóbal, Governador Civil na Bizkaia, até ao ministro do Interior, José Barrionuevo, e ao secretário de Estado, Rafael Vera. À frente de todos eles, o senhor X, que todos os indícios dizem ser o presidente do Governo socialista, Felipe González.
Ainda que a investigação tenha sido interrompida, os cargos mencionados, entre outros, foram condenados por sequestro e usurpação de fundos reservados. Paradoxalmente, a acção judicial foi dirigida por Baltasar Garzón, que assim se vingou dos socialistas por não o terem nomeado ministro. Nem dois anos passados e Aznar libertou-os da cadeia. Não apelou desta vez “aos autores intelectuais da trama” nem lhes aplicou a muleta “condenem vocês os GAL”. Também ele estava a ver bem a coisa. Para alcançar o seu objectivo do “vá-se embora”, bastava-lhe o saque generalizado às arcas de altos cargos socialistas.
Nem nos seus vinte anos de existência foi a transição democrática capaz de apurar a fundo as responsabilidades pelo terrorismo de estado impulsionado pelos socialistas com a inestimável ajuda de membros das Forças de Segurança, herança do franquismo. Epílogo natural deste, os GAL foram mais um episódio da guerra suja, só que em plena transição democrática. Lamentavelmente, também ficou mal acabado. E o Estado, que é três poderes em um, como a Santíssima Trindade, pode apoiar-se nos poderes legislativo e judicial, os quais, por mais independentes que se proclamem na teoria, se deixam manipular no seu próprio interesse. É sensato disfarçar o terrorismo de Estado do estado de Direito, sempre que os dois partidos maioritários, o PP e o PSOE, se ponham de acordo em relação a isso.
E como se puseram! Aconteceu no Acordo pelas Liberdades e contra o Terrorismo selado entre ambos no ano 2000. A ideia foi vendida pelo próprio Zapatero a Aznar a partir da oposição. Reagiram dessa forma ao medo que lhes entrou no corpo por causa do Pacto de Lizarra-Garazi (2). Incorreram justamente no que condenavam àquele. O Acordo é o paradigma do bipartidarismo, um pacto de ferro entre dois, exclusivo e grosseiramente antinacionalista. Acusa o PNV e o EA [Eusko Alkartasuna] de conivências, e exige-lhes “a ruptura formal com o Pacto de Estella” para serem democráticos.
Na base da negociação do PSOE com a ETA, fala-se da ruptura do acordo. Eu não sou dessa opinião. Está vigente enquanto continuar de pé a sequela de leis a que deu origem. Por esta via elevar-se-iam à categoria de Direito actuações passadas como a do encarceramento da Mesa Nacional do HB (1997) e do encerramento do jornal popular Egin (1998).
A primeira, e mãe de todas, foi a Lei de Partidos aprovada em 2002. Tomando como ambígua a anterior Lei de 1978, a nova expande a ambiguidade ad infinitum, na direcção desejada de facilitar a ilegalização ou suspensão dos partidos que se tornem mais incómodos. Os anos seguintes, e até hoje, serão testemunhas da sua nefasta aplicação, que afundará a esquálida democracia de Espanha até aos mínimos mais baixos de toda a transição. Poucos meses depois, em Março de 2003, o Supremo Tribunal ilegaliza o EH-Batasuna, acusando-o de “apoio ao grupo terrorista ETA”. Nas eleições municipais e forais de 2007, anulam 133 candidaturas sob a sigla da ANV com a cantilena “colaboração com o Batasuna”, ou seja, com a ETA, de acordo com a sua regra de três. Numas localidades são autorizadas e noutras são proibidas, não se sabe se de forma aleatória ou interessada, à falta de razões jurídicas objectivas. Prima a arbitrariedade ao serviço dos interesses políticos. Depois do assassinato de Isaías Carrasco, as famosas moções éticas e de censura, impulsionadas pelo PSOE e pelo PNV num acesso de zelo, tentarão golpear os municípios governados pela ANV, sem o conseguir. O embate definitivo está à vista. O omnipresente Baltasar Garzón suspende as actividades do EHAK [Partido Comunista das Terras Bascas] e da ANV, e o Ministério Público tramita a sua ilegalização. Como lição aos partidos, o juiz Garzón manda para a prisão a autarca rebelde de Arrasate por incumprimento da suspensão por ele ditada.
Após o fracasso da negociação, a máquina judicial põe Otegi na prisão, e em seguida toda a cúpula do Batasuna. Curiosamente, a magistratura esperou que se levantasse a mesa de Loiola para os prender a todos. Motivos? Terão que ser procurados na Lei de Partidos, não nos manuais de Direito. Encarceraram também os líderes das organizações juvenis Segi, Haika, Jarrai...
A teoria do “ambiente e o ambiente do ambiente = ETA”, que não é exclusiva de Mayor Oreja, mas que assoma nos pressupostos da Lei de Partidos, para além de impor via prisão o apartheid político à cúpula abertzale, expande a repressão a círculos mais amplos. Encerra um grande número de herriko tabernas e empresas. Encerra o jornal em euskara Egunkaria e processa a sua direcção, depois torturar e encarcerar os seus membros. Acusa aquelas de arrecadar fundos para a ETA e o jornal de os receber. A Audiência Nacional inaugura o macro-processo 18/98, que, rompendo moldes da prática judicial universal, processa em tropel 52 membros pertencentes a distintos grupos, sequestrando-os durante mais de um ano na Casa de Campo de Madrid. A 46 deles é aplicada uma condenação de 527 anos. Sem perder o andamento, em vista da eficácia do meio, recentemente abre outro macro-julgamento, o 33/01, contra 27 membros de Gestoras de Amnistia-Askatasuna, acusados de pertença a organização armada. Conhecendo como conhecem a farsa, os acusados renunciam à defesa.
A direcção dos GAL indicou o sequestro como o método preferencial para a guerra suja. Pois bem, assistimos depois a uma interminável cadeia de sequestros, muito de luva branca, realizados em nome do estado de Direito e da democracia, como se aquele fosse sinónimo desta: sequestro de jornais, de empresas, herriko tabernas, sequestro de partidos políticos, de organizações juvenis e culturais, sequestro massivo de cidadãos com elevadas penas, sequestro dos detidos sem garantias contra a tortura, dispersão dos presos como forma de sequestro, o mesmo que a chamada Lei Parot, que sequestra presos com a pena já cumprida. Assim, a repressão substitui a política. Assim, tiram gente da política e aumentam as bases juvenis da organização armada. Pela normalização?

(1) Segundo Marey: industrial basco, confundido com um dirigente da ETA, foi raptado por mercenários a soldo dos GAL a 4 de Dezembro de 1983, em Hendaia. Viria a ser libertado a 13 desse mês.

(2) O Pacto de Lizarra-Garazi foi assinado a 12 de Setembro de 1998 por partidos políticos (PNV, Eusko Alkartasuna, Ezker Batua, Herri Batasuna, entre outros) e diversos sindicatos e movimentos sociais bascos, com vista a uma acumulação de forças para a construção nacional e, no caso de não restar outra alternativa, a uma confrontação democrática com os Estados, que deveriam respeitar a palavra dos cidadãos de Euskal Herria. Também se postulava que a solução dos conflitos passava por um processo de diálogo e de negociação aberto, sem exclusão de qualquer agente. A assinatura deste Pacto foi em grande medida facilitada pelas conversações prévias mantidas secretamente e pelo acordo alcançado, também nesse ano, entre o PNV, o Eusko Alkartasuna e a ETA, em que as partes assumiam que o conflito basco era de natureza política e derivava da negação da soberania basca por parte dos Estados espanhol e francês, e se comprometiam a encetar um processo pelo alcance da soberania sem recorrer a expressões de violência armada – o que propiciou uma trégua indefinida e unilateral da ETA. [Mais informação, em inglês:
Lizarra-Garazi]

Fonte: Gara