Antes, quem profanava os nossos sentimentos costumava cobrir-se com o anonimato. Agora, não adoptam tais cautelas. A Audiência Nacional decide e o tripartido executa as demolições; mercenários com alma de verniz e modos polidos, muito guardacivilizados.
Vivemos tempos de renovada fúria iconoclasta. A Espanha intolerante retira placas e arranca monólitos de alto conteúdo emocional para o nosso povo; tarefa cortante que conta com a cumplicidade dos novos e sempre rastejantes “condes de Lerín” (1). É próprio de todos os conquistadores cometerem as suas felonias levando entre os arreios a espada e a maça. Nem é preciso dizer que os conquistadores espanhóis se destacam no uso de ambas. Utilizaram a primeira para subjugar os nativos. E, quando acharam que estava finalizada esta faena, realizaram a outra, bastante mais cruel e complicada: conquistar a alma dos vencidos. Desde então, tentam erradicar os sentimentos dos dominados para que não fique um rasto da sua primitiva identidade. Só quando a violência dominante controla as representações simbólicas do submetido, a conquista está garantida. As demolições profanadoras são um capítulo extenso na história do império espanhol. Conquistado o emirato de Córdova, construíram uma catedral no coração da mesquita para deixar claro quem mandava. Numerosas catedrais latino-americanas estão construídas sobre primitivos templos incas, maias ou aztecas.
O povo basco conhece bem o rigor da espada e da maça. O regente Cisneros mutilou casarões e igrejas na Nafarroa recém-conquistada. Em 1931, o monumento de Amaiur sofreu a investida dos “portadores de maças” (neste caso, dinamiteiros) (2). O ano de 1980 recorda-se como aquele em que a Guarda Civil declarou a guerra aos símbolos bascos da memória; entre outros, arrancou o monólito a Gladys (3) poucas horas depois de ter sido colocado. Ataques parecidos sofrem, de forma periódica, o monumento de Ezkaba (4), a placa que recorda Mikel Castillo (5), a evocação roncalesa aos escravos do franquismo... (6) Antes, estes ataques costumavam acontecer com premeditação, aleivosia e a coberto da noite. Quem profanava os nossos sentimentos costumava cobrir-se com o anonimato. Agora, não adoptam tais cautelas. A Audiência Nacional decide e o tripartido executa as demolições; mercenários com alma de verniz e modos polidos, muito guardacivilizados. Continuam a acumular manchas no seu currículo já bem sujo, mas é só isso que conseguem. Quatro séculos mais tarde, continuam a chover flores sobre a memória de Matalaz (7), o cura de Zuberoa que foi guilhotinado por defender os direitos do nosso povo; Sartaguda conta já com um monumento à memória fuzilada; a estrela em memória de Germán foi resposta; o monumento de Amaiur, restaurado; os muros de Hernani proclamam o carinho por Pana e Lizartza continua a honrar Ina Zeberio (8), a despeito dos conquistadores.
A Audiência Nacional decidiu que este povo esqueça os seus filhos e filhas mais queridos. Tomar-se-ão as medidas oportunas para que tais memórias não reapareçam. Agora sim, mediante um auto judicial, aniquilam definitivamente o nosso íntimo. Corria o ano 1937 e, na Bilbau tomada pelos fascistas, José María de Areiltza anunciou com semelhante contundência: “Caiu para sempre vencido esse horrível pesadelo que se chama Euskadi” Que pobre coitado!
Jesus VALENCIA
(1) Estão aqui por traidores à pátria basca.
(2) Monumento inaugurado em 1922, no local onde antes se situava o castelo de Amaiur, em homenagem aos navarros que ali defenderam a independência do seu reino, em 1522. Em 1931, quando os Navarros debatiam o Estatuto de Lizarra, mostrando total apoio à formação de um estatuto único para todos os territórios bascos, o monumento foi dinamitado. Reconstruído, foi reinaugurado a 10 de Outubro de 1982 e possui uma forte carga simbólica para todo o País Basco.
(3) Gladys del Estal (1956-1979): jovem militante ecologista donostiarra assassinada pela Guarda Civil a 3 de Junho de 1979, quando participava numa manifestação contra a energia nuclear, em Tutera (Nafarroa). Passado um ano, cerca de 4000 manifestantes dirigiram-se ao local onde a jovem tinha sido morta e ergueram um monumento em pedra onde se lia “Gladys del Estal, assassinada em Tutera por defender o sol, a água, e a liberdade. Nós não te esquecemos. Gogoan zaitugu”, sendo que a Guarda Civil o retirou poucas horas depois. Em 1981, o assassino foi condenado a um ano e meio de prisão, que não chegou a cumprir.
(4) Monumento erigido em 1988 em honra dos 203 presos republicanos abatidos na tentativa de fuga do forte militar de San Cristóbal, situado no monte de Ezkaba (Iruñea). Dos cerca de 800 presos que tentaram a fuga, a 22 de Maio de 1938, apenas três acabariam por conseguir passar para o outro lado dos Pirinéus. Entre os ataques sofridos pelo monumento erigido em 1988, inclui-se a ausência da UPN nas cerimónias com que o parlamento navarro homenageou os fugitivos, em 2006.
(5) Mikel Castillo (1967-1990): militante da ETA abatido a tiro pelas costas e à queima-roupa, a 18 de Setembro de 1990, por um agente da Polícia Nacional espanhola, numa rua da Parte Velha de Iruñea [Pamplona]. Apesar de o assassino ter posteriormente alegado em tribunal que Mikel Castillo se virou para ele empunhado uma arma, o seu testemunho foi desmentido por Bautista Barandalla (militante detido nessa operação) e por uma moradora que assistiu ao episódio.
(6) Evocação dos cerca de 700 000 prisioneiros que foram obrigados a trabalhar nas mais duras condições para o regime franquista. Realiza-se anualmente, desde há cinco anos, no Alto de Igari, entre as localidades de Igari e Bidankotze (Pirinéus de Erronkari, Nafarroa).
(7) Matalaz, nome por que é mais conhecido Bernard Gohienetxe (?-1661): sacerdote de Zuberoa, liderou a revolta dos habitantes do território contra o centralismo francês crescente e que se fazia sentir no aumento dos impostos, na supressão de direitos forais e na passagem de terras comunais para as mãos da nobreza. A revolta foi esmagada ao fim de dois meses, e Matalaz foi preso e executado a 8 de Agosto de 1661. Herói cantado em Zuberoa e pelo nacionalismo basco.
(8) Ina Zeberio: militante da ETA assassinada pela Ertzaintza a 5 de Junho de 1998, numa casa de Gernika, onde o seu corpo foi encontrado crivado de balas (20). “Filha predilecta” de Lizartza, o seu retrato foi retirado da Câmara Municipal desta localidade e substituído pela bandeira espanhola aquando da usurpação da edilidade pela militante do PP Regina Otaola, que viria a ser declarada autarca legal, apesar de o seu partido ter recebido apenas 27 votos, numas eleições municipais (ocorridas a 27 de Maio de 2007) em que a EAE-ANV obteve 186 votos e se contabilizaram 142 em branco.
Fonte: Gara