domingo, 8 de novembro de 2009

Uma foto e um futuro

Não é mais um artigo, nem os seus signatários escrevem de onde o deveriam poder fazer. Chega à nossa redacção proveniente de uma prisão espanhola e é rubricado pelos cinco dirigentes da esquerda abertzale que foram parar à prisão por ordem de Baltasar Garzón no passado dia 16 de Outubro. O artigo começa por recolher o testemunho do «capital de denúncia, força e esperança que tomou as ruas donostiarras» um dia depois, uma onda popular que deve ser capitalizada para abrir as portas a uma outra fase política: «Uma nova fase dentro do processo de libertação nacional que, indispensavelmente - acrescentam -, necessita de novas estratégias, compromissos e instrumentos políticos».


A manifestação que inundou as ruas de Donostia em resposta à nossa detenção e ao nosso encarceramento deu-nos uma grande satisfação, insuflando força e moral às nossas reflexões e convicções; fica então aqui o nosso agradecimento às dezenas de milhares de pessoas que, com o lema «Askatasunaren alde. Eskubide guztiak guztientzako» [Pela liberdade. Todos os direitos para todos], responderam de forma massiva a esta nova actuação repressiva do Estado.

Satisfação ao avaliar a enorme resposta organizada após a enésima intervenção repressiva contra sectores políticos independentistas. A exemplar convocatória realizada pela maioria sindical, com o ELA e o LAB como impulsores principais, voltou a plasmar uma foto social e política há algum tempo esquecida mas nem por isso menos exigida e ansiada pela grande maioria do espectro sociológico abertzale e progressista do nosso povo.

Foram muitas as operações político-judiciais que, em clave de perseguição política, com detenções, buscas, incomunicação... acabaram em imputações e encarceramentos. Esse genocídio político tem vindo a ser feito com intervenções periódicas repletas de arbitrariedade e discricionariedade. Primeiro assinala-se o alvo político e depois conseguem-se/constroem-se os argumentos de imputação. Um conjunto de actuações que surpreendem a sociedade basca por acusações que, longe da realidade, só pretendem condicionar a situação em função da estratégia do Estado para abordar a actual fase do processo político.

Agora, por fim, chegámos a um ponto em que, com uma leitura política correcta em torno das verdadeiras intenções políticas da acção repressiva do Estado, a sociedade basca reagiu de forma massiva e esperançosa. Isto é, sem os lastros que os olhares ou as análises retrospectivas nos deixam, aquilo que é verdadeiramente importante neste momento.

A sociedade basca despertou do letargo provocado por muitas inércias, erros e indefinições, com responsabilidades múltiplas, a que ninguém deveria fugir.
Demonstrou a sua capacidade e potencial perante as atitudes arrogantes e politicamente impunes das acções dos poderes do Estado para com Euskal Herria. E esse capital de denúncia, força e esperança que tomou as ruas donostiarras não pode nem deve diluir-se ou ser flor de um só dia. Pelo contrário, face à perseguição das actividades políticas de um sector da sociedade basca, às ameaças palpáveis de criminalização em cascata contra outros sectores políticos, sindicais e sociais, à interminável violação de direitos civis e políticos... a sociedade basca tem de dar continuidade e profundidade a um movimento social expansivo e ideologicamente transversal em demanda de liberdades democráticas; em exigência de todos os direitos civis e políticos para todos os cidadãos de Euskal Herria.

Perante a estratégia do Estado, que consiste em condicionar, pela repressão e pela criminalização arbitrárias, o mapa político basco e controlar a evolução do processo nesta passagem entre dois ciclos políticos, o povo basco tem de responder com iniciativas múltiplas e massivas pelas liberdades democráticas. Em Donostia viu-se que as capacidades e os compromissos básicos são possíveis e, sobretudo, que os cidadãos abertzales e progressistas exigem convergências sociais que implementem ou sejam o estímulo colectivo que permita o desenvolvimento eficaz da pressão social.

Mas esse sector social reivindicativo não pode desenvolver-se de forma isolada. Afogar-se-ia rapidamente, e voltaríamos, outra vez, a descapitalizar o valor e o potencial quantitativo e qualitativo da mobilização, que tanta esperança gerou. Portanto, com a onda social surgida, é preciso abordar iniciativas globais e sectoriais que quebrem o actual bloqueio e abram as portas a uma outra fase política. É possível. É necessário. E, para além do mais, o povo basco exige-o de forma urgente.

Uma nova fase, dentro do processo de libertação nacional, que há-de ter como objectivo a conquista de um cenário democrático centrado no reconhecimento nacional de Euskal Herria e no respeito pela vontade democrática da cidadania, abrindo o caminho a uma estratégia independentista. Fase e objectivos que, indispensavelmente, necessitam de novas estratégias, compromissos e instrumentos políticos.

Nesta fase do processo de libertação, a Esquerda Abertzale deve liderar e partilhar uma estratégia cimentada exclusivamente na adesão popular; na acumulação e activação de forças sociais abertzales, soberanistas e independentistas por uma mudança política e social. A estratégia eficaz que o actual momento histórico exige só se pode construir sobre maiorias políticas e sociais democraticamente articuladas. Ou seja, a sociedade basca tem de ser a protagonista, com a sua força e organização, para, num processo democrático, avançar em direcção a essa mudança política. Não temos de esperar por ninguém. Não temos de estar condicionados pelos que apostam no bloqueio para debilitar as variantes sociopolíticas, culturais, simbólicas... de um projecto nacional basco definido e reforçado na batalha contra o modelo constitucional-estatutário imposto na transição pós-franquista.

A aposta num processo democrático requer decisões de carácter estratégico por parte de todos os agentes sociais e políticos, sem excepção, para estruturar os elementos de uma nova fase política. Neste sentido, a modificação dos actuais parâmetros de confrontação política, questão-chave no bloqueio existente, há-de ser uma aposta unilateral da Esquerda Abertzale, que deverá ser complementada com compromissos e acordos táctico-estratégicos entre os diferentes agentes políticos, sindicais e sociais.

É a partir do começo do processo democrático que iremos avançando e tornando irreversível tanto o estabelecimento de liberdades democráticas - hoje negadas para adulterar a vontade democrática do povo basco - e a libertação de todos os presos políticos, como a definição e a determinação - via negociação política - de um acordo democrático que, respeitando a vontade de Euskal Heria, nos permita estruturar política e institucionalmente o sujeito nacional basco e avançar para a independência e o socialismo, com base no apoio democrático dos cidadãos.

E nesta estratégia de acumulação e activação progressista são indispensáveis instrumentos adaptados às características desta disputa política. Não estamos numa conjuntura de carácter resistencialista. Não podemos especular com meros movimentos tácticos influenciados pelas trajectórias específicas dos diferentes agentes políticos e sociais. Há que construir uma ofensiva democrática para conseguir estabelecer os alicerces políticos - acordo democrático - de uma estratégia independentista numa Europa em constante movimento político.

Neste sentido, o soberanismo e o independentismo necessitam de convergir em compromissos, propostas e iniciativas de massas e, inclusive, institucionais. Esse independentismo e soberanismo tem de modificar as correlações de forças no tabuleiro político e, como consequência, nas relações Euskal Herria/Estado, impulsionando, de forma simultânea, um modelo económico e social que satisfaça as necessidades e os interesses da maioria popular e trabalhadora. Uma tendência convergente que tem de incidir no espaço político, sindical, social e cultural, tanto a nível nacional como local.

Convergir e juntar forças, assim, para multiplicar efeitos políticos e sociais. Sem medos, com determinação e ambição. O caminho percorrido foi muito importante. Fizemos uma etapa básica com a neutralização dos objectivos assimilacionistas do Estado espanhol com o chamado Estado das Autonomias. Agora temos de organizar as maiorias democráticas que determinem um novo quadro político para Euskal Herria na senda independentista. Essa é a fase.

«Nova fase, novas estratégias, novos instrumentos»; essa há-de ser a aposta, a referência e o compromisso da Esquerda Abertzale. O povo basco espera atento e expectante. Todos devemos estar à altura desse anseio colectivo. Sem tabus e sem complexos. Aurrera!

Rafa Díez, Sonia Jacinto, Arnaldo Otegi, Arkaitz Rodríguez, Miren Zabaleta
Em Estremera, a 25 de Outubro de 2009

Fonte: Gara