segunda-feira, 19 de julho de 2010

Um julgamento de uma nação sem Estado, e uma Copa para um Estado que gostaria de ser nação


Há processos judiciais que retratam com muita precisão um conflito político. O caso mais paradigmático em Euskal Herria é o de Burgos 1970, quando o julgamento militar de alguns cidadãos bascos voluntários de uma organização então não muito conhecida, que se chamava ETA, acabou por se transformar num boomerang contra o regime franquista em todo o mundo. Esclarecedor foi também o julgamento da Mesa Nacional do HB, que decorreu no Supremo Tribunal em 1997, pelo modo como se afigurou a prova do algodão da incapacidade do Estado para responder por vias políticas à alternativa democrática da esquerda abertzale; ano e meio depois, o Tribunal Constitucional espanhol teve de corrigir à pressa e a correr aqueles encarceramentos e admitir implicitamente que se tinha cometido uma grande injustiça.

Passam os anos e, pese a constatação palpável de que esses diques repressivos nunca puderam conter a maré da iniciativa política, insistentemente, o Estado espanhol mantém essa aposta, provavelmente já só para resistir ou ganhar tempo. Agora, é a primeira instituição nacional basca da era moderna, Udalbiltza, a sentar-se no banco dos réus da Audiência Nacional.

Nos últimos anos, estes macro-julgamentos sucederam-se em cascata contra todo tipo de organizações políticas, sociais, juvenis ou meios de comunicação, pelo que existe o risco de que acabem por perder a sua gravidade aos olhos da sociedade. São todos igualmente denunciáveis na medida em que radicalmente injustos, mas o caso concreto da Udalbiltza tem peculiaridades que remetem para aqueles processos de 1970 ou 1997.

Para começar, está-se a julgar eleitos, ou seja, representantes dos cidadãos, o que representa no fundo sentar no banco dos réus todos os que, através do seu voto, lhes conferiram o mandato de actuar numa determinada direcção. Depois, são julgados por fazer política, e por fazê-la do modo mais digno e no seu sentido mais solidário: organizando-se a partir da base, procurando recursos próprios, apoiando os âmbitos e as zonas mais precárias... E julga-se uma instituição plural e transversal, que nasceu com o estímulo de sensibilidades ideológicas muito diferentes, o que também constitui um exemplo muito difícil de encontrar no panorama político actual.

Acusa-se, em suma, representantes dos cidadãos que apenas procuravam estruturar institucionalmente o seu país. Pelo crime de não se conformarem com a ideia de que Euskal Herria não seja uma nação, uma nação dividida, e de darem passos para que um dia seja um Estado.

A Catalunya não acaba em Joanesburgo
O julgamento começou esta semana em Madrid, onde ainda não se tinham apagado os ecos da vitória da sua selecção no Mundial de futebol. Esse feito desportivo era esperado há tantas décadas que muitos não deixavam de sonhar com o dia D em que um simples golo fosse o fetiche catalizador para converter o Estado espanhol numa só nação coesa. Mas bastou uma semana para verificar que uma coisa é o terreno das exaltações desportivas do momento e outra muito distinta é a das realidades políticas perenes.

Houve quem chegasse a conceber a ideia de que o cabeceamento de um jogador chamado Carles Puyol contribuísse para virar a página sobre o esmagamento espanhol da vontade dos cidadãos catalães no Estatut. Como é lógico, tiveram uma grande decepção no sábado, dia 10, com a imponente mobilização cidadã em Barcelona, e outra nesta sexta com o compromisso manifestado no Parlament. São os mesmos que na segunda-feira passada, nas celebrações do Mundial, já bradavam aos céus porque alguns jogadores tinham exibido senyeras em Madrid, incapazes sequer de digerir e apresentar o facto como a mostra daquele «são regionalismo» que Franco tentou implantar.

Espanha tem uma grande selecção de futebol, isso é muito claro. E também tem um Estado, inquestionavelmente. Mas, ao contrário de Euskal Herria ou da Catalunya, dentro desse Estado não existe uma nação única. Não existe excepto na letra da sua Constituição, que agora serviu ao Tribunal Constitucional para inflamar o conflito com a maioria dos cidadãos da Catalunya. Até o presidente do Governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, deixou patente o seu incómodo e no sábado admitia que o debate continua necessariamente aberto e que terá de dar novas respostas.

Em resumo, os triunfos desportivos servem para vender camisolas, mas não para reparar desaguisados políticos de tal calibre. A vitória no Mundial de futebol não servirá para avançar na tentativa de assimilação de bascos ou catalães, que resistem há muitos séculos e estão há vários anos envolvidos numa dinâmica de iniciativa política crescente.

O triunfo deve valer provavelmente apenas para reforçar a auto-estima de um Estado - outrora Império - necessitado de referências de êxito, como ficou claro nestas semanas. Seria desejável que essa auto-estima fosse gerida num sentido positivo, para que efectivamente o Estado espanhol entrasse numa nova dimensão histórica, moderna e democrática. Porque não é uma vitória futebolística que dá grandeza - grandeur em francês - a um Estado, mas a capacidade de jogar limpo, consigo e com os outros.
Fonte: Gara