sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Liberdade para a servidão


A anunciada perseguição da plataforma D3M, sintoma e consequência da supressão da liberdade de pensamento, é o ponto de partida da reflexão de Alvarez-Solís acerca da secular recusa de Espanha a toda a mudança e “a converter o seu Estado num quadro válido de acolhimento para as nações peninsulares que não são espanholas”.

Não sei como acabará a perseguição contra a D3M, mas causa uma espessa repugnância essa prática do acosso. A supressão da liberdade de pensamento destrói o ser, que se realiza no acto de pensar. Não é possível falar de liberdade ou democracia se um só pensamento fica por comunicar. Até os místicos, esses seres que parecem enclaustrados em si mesmos, necessitam de transmitir os seus arrebatamentos e as suas ânsias interiores. Sem nos sabermos nos demais, não somos. O ser humano aperfeiçoa-se pelo pensamento comunicado.

Acreditei sempre que a tarefa essencial do governante reside em admitir, e mais ainda em estimular, todo o tipo de pensamento moral e político. Facultar a circulação das ideias equivale a elevar a qualidade da vida colectiva. Em Espanha, talvez isto que digo seja pouco compreensível, pois a atitude espanhola perante as ideias é sempre de desconfiança. O espanhol vive na incomunicação. Isto impediu todo o progressismo ideológico, científico e económico. O “eles que inventem”, de Unamuno, retirou criatividade aos indivíduos, até ao ponto de converter os espanhóis em seres incapazes para a filosofia, que foi substituída por uma tentativa de estética epidérmica, barroca, arrevesada e vazia. O resultado é um país ancorado, incapaz de qualquer navegação intelectual.

Pensa em tudo isso o actual Governo, já que os anteriores não o fizeram? Certamente, a badalada social-democracia parece reduzir-se a jogos verbais que se dissolvem em mil gestos reaccionários. A prova do algodão do que afirmo está hoje na postura de Madrid sobre Euskadi. Euskadi não chateia grande coisa, creio eu, porque lá aconteçam certas violências. Euskadi incomoda porque é um forno de pensamento político e social. O soberanismo basco – muito superior hoje ao catalão – supõe a ruptura com um Estado urdido por poderes imóveis. Um Estado não só inconveniente, mas que perverte qualquer movimento democrático. Pensar Euskadi nesse Estado equivale a entregá-lo agora ao domínio socialista e a perder, para a sociedade, a força renovadora que representa o soberanismo basco. Esta absorção, que procura camuflar-se inutilmente sob o conceito abstruso de plurinacionalidade, obriga Espanha a realizar umas absurdas manobras intelectuais para atrair certos bascos com requebros, que à sobremesa já são impossíveis, uma vez que não surgem de uma genuína biologia ideológica. Se alguma coisa delata o PSE como um partido incapaz de verdadeira basquidade, é o elementar jogo para incorporar a realidade euskaldun na unidade espanhola. Essa pretensa unidade em torno do nacionalismo espanhol, vestindo-a de pluralidade nacional, tingiu sempre de reaccionarismo a sociedade espanhola. A prova desta asserção está em que o Estado espanhol – que foi sempre um Estado da Coroa – se opôs em qualquer momento e com uma fúria cega a toda a mudança, e não falemos já de uma revolução. Assim se estrangularam as prometedoras tentativas nacionais de catalães, galegos, valencianos e bascos. Espanha nunca admitiu converter o seu Estado num quadro válido de acolhimento para as nações peninsulares que não são espanholas. Os mesmos rebentos iniciais de burguesismo, que se deram na Andaluzia comercial de finais do século XVIII, burguesia que pretendia ser a ponte entre as possessões americanas e a Espanha interior, foram asfixiados mediante diversos expedientes. A Andaluzia contraiu-se consequentemente sobre si mesma e acabou reduzida à vontade cerealista da sua aristocracia ocupante, que nunca deixou de ser pró-castelhana. Somente os vinhateiros importados conseguiram abrir uma janela inútil para o exterior. Foram tragados pelo andaluzismo de cenário.

De forma sucessiva, foram caindo formações políticas, desde o Batasuna até às últimas tentativas partidárias. Os bascos de nacionalismo soberanista ou seus adjacentes – pergunto-me novamente o que é um nacionalismo não soberanista – continuam, no entanto, a reaparecer no teatro de marionetas com figuras sucessivas, que levam com a clássica paulada do maléfico boneco pseudo-jacobino mal aparecem em cena. À vista de tudo isto, penso com insistência e preocupação se não se fomenta obstinadamente a ira basca, já que a repressão não irrita apenas os radicais, mas qualquer basco que vê desprezada a sua nação. Há que ser muito frívolo para não se sentir afectado por esta onda expansiva da bomba espanholista. Mais ainda, essa onda expansiva atinge e fere os poucos espanhóis que crêem verdadeiramente no papel basco para repor a liberdade e sanear eficazmente a democracia.

À beira de umas novas eleições, volto a reflectir sobre o papel do Partido Socialista de Euskadi na consulta. Para que quer esse partido chegar à Lehendakaritza? Evidentemente para fabricar uma política antinacionalista a partir das instituições bascas e entregar uma vez mais a nação euskaldun a Madrid, depois de lhe dar na cara um beijo traiçoeiro. A este respeito, surpreende-me que em bairros operários de algumas cidades viradas para a ria se mantenha vivo o voto socialista, que já no tempo de Indalecio Prieto foi envenenado de espanholismo. Se esses votantes realmente se comprazem na sua vida basca, como vida superior à rígida e lamentável vida espanhola, incorrem numa contradição muito difícil de explicar a partir de uma lógica elementar. Euskadi, embora com todas as tristes confusões nacionalistas que se dão no seu seio, alcançou cotas sociais mais confortáveis do que aquelas que existem na Extremadura, em Castela, em La Mancha ou na Andaluzia – e não desconheço as censuráveis desigualdades sociais bascas – mercê de uma certa capacidade de autogoverno, sem dúvida mais social que política. Os bascos sempre exerceram algum tipo de soberanismo no terreno económico e cultural, ainda que fosse em condições de opressão e também de violência por parte do poder central de Espanha. Foi um soberanismo que Madrid procurou afundar reiteradamente com escandalosas armas administrativas, policiais e judiciais, chegando a qualificar cinicamente de assistência ao terrorismo acções concretas de política aberta.

Espanha teme que se descosa no seu vestido estatal o débil alinhavo basco e que por aí comece a nudez da obscura realidade espanhola. Às vezes o meu pensamento desliza com preocupação pela ladeira perigosa de que algumas políticas de verdadeira esquerda social se abeiram de ferir o Estado espanhol com um estranho retraimento. Lenine – e valha a referência sobretudo para os comunistas que tropeçaram na pedra do eurocomunismo – postulou com absoluta claridade que se devia “vincular a luta revolucionária pelo socialismo com um programa revolucionário quanto ao problema nacional”, advertindo de seguida que “queremos a união livre e devemos, em consequência, reconhecer a liberdade da separação”. Cada povo há-de protagonizar a sua existência histórica – económica, social e cultural – desde o seu acontecer nacional. Os tempos demonstram que o sonho em grandes espaços políticos – como é o enredo da globalização – ajuda os poderes oligárquicos e não à luta dos trabalhadores, que precisam de um cenário mais reduzido, como é o autenticamente nacional. O internacionalismo socialista requer cenários que se possam dominar melhor. O comunista precisa de se apoiar na sua própria nação de modo a entender-se digna e solidamente com as outras nações e os demais comunistas. Tudo o que postule um centralismo estatal baseado em ferrolhos não pode alimentar nenhum movimento que conduza à paz própria do colectivismo. No seio dos estados actuais – pura fórmula policial – o que se entende por liberdade não é mais que uma redução à servidão. A partir daí, que cada qual leia como bem entender o seu livro de horas.

Antonio ALVAREZ-SOLÍS
jornalista

Fonte: Gara