segunda-feira, 10 de agosto de 2009

«Imagine»


Imaginam que em Berlim ou em qualquer outra cidade alemã Himmler, Goebbels ou Eichmann tenham recebido em 2009 tais honras? Eu também não. A autarca de Pamplona, ao invés, recorda o fascismo com carinho

A comunicação social informa-nos, de vez em quando, sobre este ou aquele ataque contra a história perpetrado por herdeiros biológicos ou políticos de genocídios e razias relativamente recentes. Quando um cemitério judeu é profanado na Argentina, a notícia aparece em destaque mesmo no último recanto do mundo, traduzida simultaneamente para todos os idiomas que se possam imaginar. Os protagonistas de semelhantes excessos são perseguidos pela justiça, recriminados em público e, se o crime o exige, multados e encarcerados. A apologia da ideologia totalitária foi desterrada da educação e da comunicação social, tanto pública como privada, com um controlo exaustivo dos seus surtos sazonais.

A excepção, contudo, confirma a regra geral. Aqui, perto de casa, na Espanha, as suas instituições, os seus meios de comunicação, as suas universidades, grande parte da sua sociedade, está-se completamente nas tintas para o sentir civilizado destas normas, escritas e não escritas, e avançam com um desprezo crasso perante os crimes históricos. Quem é mais adentrado nos anos viveu-o: durante décadas venderam-nos propaganda em vez de história. De há algum tempo a esta parte, entretanto, o negacionismo cobre com o seu manto a Espanha oficial. Desde Pelayo, apesar da contumácia basca e catalã, Espanha foi a antessala do paraíso.

Não me excedo, nem são fruto de um esquentamento das minhas impressões. Às provas me cinjo, como diria o magistrado. Não é preciso remexer muito e, como amostra, as minhas andanças deste fim-de-semana. Sem ordem mas com concerto. A constatação de tais questões deixou-me, isso reconheço-o sem pudor, um amargo de boca. O mundo que desbravámos para filhos e netos é, em muitas ocasiões, nauseabundo.

No domingo abri uma página de um diário do grupo Vocento e descobri que um catedrático de história da universidade basca dirigida pelos jesuítas dava um festim laudatório à conta de José María Areilza. Mentia escandalosamente, ocultava os seus crimes, a sua permanência no Conselho Nacional da Falange quando os açougueiros de Franco linchavam por limpeza étnica e recolocava a personagem nas esferas «mundanas» da história. Um artigo para guardar. Vergonhoso para a universidade basca, mesmo sendo privada.

Mudei de periódico para deparar noutros dois diários com um mesmo texto apenas diferenciado pelo idioma: membros de uma associação dedicada à recuperação da chamada memória histórica queixavam-se amargamente do aumento de ataques contra os símbolos que recordam as vítimas do franquismo. Em Artica tinha sido partida uma placa que evocava os 17 fuzilados na localidade. Nas imediações de Aritxulegi os disparos de uma metralhadora, ou talvez de uma pistola, tinham segado, pela segunda vez, a evocação aos ekintzales assassinados pelo fascismo. A lista de canalhadas continuava e fazia mirrar o coração. Fechei os periódicos e desci até à garagem.

Iniciávamos uma nova campanha em Amaiur, seguindo a esteira dos últimos anos. Chegámos num instante, graças à nova estrada. Não valeu a pena a velocidade. No cartaz da entrada do antigo castelo desmochado por Cisneros e defendido pelos irmãos de São Francisco Xavier, uma inscrição, «Cristo rey», e um símbolo pintado a grandes traços, o da Ordem Nova, o mesmo que trouxeram para Donostia os falangistas que defendiam Hitler atrás dos escudos da Polícia Autónoma.

Veio-me à ideia, de novo, o artigo do catedrático, e a descoberta de uma velha edição de La Vanguardia onde se relatavam os últimos momentos do sacerdote Ariztimuño, Aitzol. Acabava de resgatar a crónica por causa da homenagem de uma parte da Igreja basca aos padres fuzilados por Franco. E o diário catalão referia que Aitzol não devia ter morrido após os disparos do pelotão de fuzilamento, pelo que um jovem falangista de uma conhecida e rica família de Bilbo foi quem se encarregou de lhe dar o tiro de misericórdia. Por que é que uns crimes são publicitados e outros se escondem debaixo da almofada?

Aquilo em Amaiur era degradante. Tentei imaginar uma pintada com algo assim como «Gora Euskadi» na porta da Basílica do Pilar, em Saragoça, na Cibeles, em Madrid, ou na Giralda, em Sevilha. Bem sei que a comparação não é válida, porque a malvadez dos criminosos não tem equivalência. E que o gora é inofensivo. Mas deixem-me recriar o símile. O escândalo seria tremendo. O Parlamento de Gasteiz pronunciar-se-ia de imediato e pediria perdão a quem quer que fosse. Haveria manifestações e comunicados de intelectuais, entre eles de Saramago e Boadella, sem dúvida, e a Polícia procederia às averiguações e detenções pertinentes. Nem mais nem menos.

Posto a imaginar, meti-me num poço sem fundo. Imaginei, sem a poesia de John Lennon, um cenário absolutamente distinto do do presente. Centenas de energúmenos chegados de todas as partes da Europa, cuspindo e urinando na praça do Oriente, escavacando à martelada o aqueduto romano de Segóvia e defecando nos símbolos dos defensores da Madrid pintada por Goya. O pesadelo não se aguenta muito tempo. Os sonhos são frágeis.

Voltei à realidade e recordei. Recordei as expedições espanholizantes, desde a do então príncipe, quando o Governo celebrou em Gernika o dia da Raça (quem falou em bombardeamento?), até ao desfile da Virgem do Rocio pelas ruas de Bilbo, para fazer baixar a bola à de Begoña, que, pelos vistos, depois de tantos anos tinha aprendido euskara.

Recordei o recente atropelo da Plaza del Castillo. As ruínas que se deixaram entrever há pouco, como quem diz, remontavam a dois mil anos: um menir, uma necrópole muçulmana, umas termas romanas e uma grande muralha. O Município de Iruñea, no entanto, preferiu a especulação urbanística. Na lixeira da localidade de Beriáin apareceram, segundo o El País, «abundantes vestígios arqueológicos, datados entre os séculos I-II da nossa era até ao XVI». Provinham da Plaza del Castillo que a Câmara pamplonesa entregou aos construtores do parque de estacionamento. Vergonha dos outros. Lembram-se de Praileiatz? De certeza que sim.

Almocei precisamente em Iruñea e fiquei a conhecer, perplexo, a imposição por parte da autarca do nome de um dos verdugos espanhóis do século XX para um dos centros culturais da capital. Diz a burgalesa que a questão do nome, Tomás Domínguez Arévalo, é o menos e que o que realmente importa é o título nobiliárquico, Conde de Rodezno. Uma afronta aos democratas. Imaginam que em Berlim ou em qualquer outra cidade alemã Himmler, Goebbels ou Eichmann tenham recebido em 2009 tais honras? Eu também não. A autarca de Pamplona, ao invés, recorda o fascismo com carinho e se ri-se da memória dos mais de 300 pamploneses fuzilados quando o tal Tomás era ministro da «Injustiça» de Franco.

Regressei a casa angustiado e, de passagem, recordei que, entre nós, o desprezo pela história não anda muito longe do que professam os dirigentes navarros. Num espaço público como Urgull, pulmão da cidade, repousam com todas as honras os restos da tropa inglesa que apoiou a causa liberal em 1835. Vinte anos antes, vilões com o mesmo uniforme tinham queimado a cidade e violado as suas mulheres e meninas. Não conheço nenhum outro lugar do mundo, ainda que provavelmente exista, com tantas honras aos filhos de assassinos e violadores. Tudo isto porque Inglaterra apoiou a causa liberal num meio em que o carlismo era esmagadoramente maioritário.

E imaginei novamente um cenário de sarcasmo. Graffiti em Atapuerca, demolição da catedral de Burgos para edificar casas unifamiliares, desfiles provocadores de seguidores de Nélson e Napoleão na Plaza Mayor de Madrid, venda por atacado dos capitéis da mesquita aljama de Córdova, metralhamento das placas que evocam os defensores de Numância... E é isso o que sinto, com as devidas distâncias, que estão a fazer no meu país. «I am a dreamer», sou um sonhador, cantava Lennon. Talvez radique aí o problema.

Iñaki EGAÑA
historiador