Muito se escreveu e comentou sobre a mudança de mapa meteorológico na televisão basca. Desde aqueles que esperavam um quadro apocalíptico, que abrangesse o império hispano e as suas essências, com o reino de Granada conquistado aos mouros, Gibraltar e a ilha de Perejil, até aos que saudaram com alívio a nova situação, porque no final mantém o critério da 'envolvência', e nos retrata com parte dos Pirinéus, Iparralde e locais de veraneio mais próximos.
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Um bom exemplo desta expectativa e destes comentários é o artigo de Pello Gerra na [revista] Zazpika (19-VII-2009), que saúda a infografia do tempo com ironia e como expressão do "mapa do reyno" (assim, em estilo arcaico), em alusão a Navarra. "Era preciso recorrer aos mapas medievais europeus - escreve Pello - para visualizar o conjunto do território que na sua época constituiu o velho reino".
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O mapa da lei
Sem rejeitar esta perspectiva de Gerra, à qual não estamos acostumados, interessante pela abordagem histórica que nos oferece, ia atribuir a este texto o título 'o mapa da lei'. Porque, com efeito, o que realmente nos meteram pelos olhos adentro nesse gráfico, face à ilusão nacionalista de um povo basco visualizado, foi o lembrete da lei. A lei, não nos esqueçamos, é território; aplica-se e actua num espaço delimitado; é jurisdição territorial ("estou fora da minha jurisdição", dizem os xerifes e os chuis nos filmes quando passam a fronteira). O seu efeito é a cartografia humana ordenada, segmentada, regulamentada pelo poder e pela autoridade. E não esqueçamos nunca, na sentença de Antonio Canovas, o que isso implica: 'ao amigo o favor; ao inimigo a lei'.
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Como dizem Karl Meyer e Shareen Blair, "Todos os mapas são políticos, e talvez se possa afirmar que todos os cartógrafos são políticos". O que o novo mapa meteorológico nos mostra diariamente não é a Grande Navarra que alguns quiseram ver. O país desapareceu. O desenho sobre o qual se localizam ventos, borrascas e isóbaras é o das fronteiras que nos separam. São os limites legais, oficiais, institucionais, que nos impuseram. Perante o povo que vive, trabalha e se reconhece na comunidade, instalaram as fronteiras que nos cercam. Esses traços dividem-nos; desvertebram-nos como nação e condenam-nos a sobreviver separados em diversas jurisdições estrangeiras.
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Para deslocar o imaginário nacional basco, incauto, despistado como ele só, apresentaram-nos o gráfico do imaginário oficial dos Estados, também nacionalista, mas muito mais sibilino. Bastante mais instituído, mais sólido, porquanto dispõe de escolas que o ensinam, meios de comunicação que o reproduzem diariamente, polícias que vigiam os seus passos, documentos notariais e de toda a espécie que certificam a existência desses domínios, ilegalizações que funcionam para um lado e não para o outro, câmaras de comércio, colégios profissionais, ligas de futebol, passes ferroviários, subsídios, eventos culturais, impostos que pagamos e todo um conjunto de procedimentos quotidianos - segmentados por territórios - que constroem no dia-a-dia a realidade social e o ideário.
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De novo, segundo Karl Meyer e Shareen Blair, "os mapas estão para a exploração como as escrituras para a teologia: fonte de autoridade para afirmar verdades que se vislumbram ao longe". A interpretação do mundo político emana deles. E nós a olharmos para a lua enquanto nos surripiam a carteira.
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A guerra de Tróia
Como disse, ia chamar a este texto o mapa da lei; mas, seguindo Pello Gerra, vem-me à memória a origem destas fronteiras. Não é o separatismo que as estabelece, contra a propaganda de tantos anos, mas os grandes Estados, que nos dividem a terra entre Espanha e França, que nos separam em comunidades forais e autónomas, em departamentos, províncias e condados. E, como afirma Pello Gerra, nessas fronteiras interpostas desenham-se as linhas de conquista de séculos; é o caso de Castela Vetula e La Rioja no século XI; a CAB em 1200; Treviño seguiu um caminho à parte; a Alta Navarra foi invadida em 1512-1530; não se vê a Baixa Navarra porque foi engolida em 1620 e assimilada em deixar marcas...
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Essas fronteiras do mapa do tempo, assim, são as feridas da nossa história. No seu emparcelamento, retratam o percurso das derrotas que amontoámos. Nessas fendas fragmentou-se, século após século, a nossa independência. Nelas se deteve, em cada investida, o exército inimigo. Estas barreiras travaram por uns momentos as conquistas que no final acabaram connosco. Foram as trincheiras que em cada época resistiram.
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Por isso vejo aí o país retratado numa interminável guerra de Tróia, num terreno em que, se escavássemos, encontraríamos as cinzas das noves cidades sobrepostas. Uma guerra dissimulada, ocultada, que chega até aos nossos dias, ainda que se observem as formalidades e os exércitos se vistam de católicos, liberais, nacional-católicos ou de defesa da democracia.
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O mapa do tempo que hoje celebramos é o frio mapa do poder hispano (e francês). Temo-lo tão impresso nas nossas mentes que já não nos surpreende, que já nos é invisível, que nos causa alegria quando o vemos, porque, na sua naturalidade, já não é ideologia, nem representação, nem nacionalismo. Para o nosso olhar de idiotas desmemoriados, é transparente.
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Claro que, como dissemos tantas vezes, não estamos a falar de história; estamos no presente, na televisão pública e na perspectiva simbólica da autoridade que nos governa. Na política oficial. Na guerra de Tróia que não tem descanso.
Angel REKALDE
Fonte: nabarralde.com
Angel REKALDE
Fonte: nabarralde.com
Imagem: kaosenlared