O autor arranca a sua reflexão partindo do conceito de possibilidade como eixo central da ciência e da prática políticas. Um eixo que o ministro espanhol do Interior, Alfredo López Rubalcaba partiu em dois, ao negar taxativamente que o Batasuna regresse ao âmbito da política «legal», nem mesmo no caso de fazer uma outra abordagem sobre a violência.
Na política pode-se renunciar a tudo, menos à possibilidade. Porque a política é a possibilidade; a capacidade de instaurar realidades. A liberdade. Os valores são absolutos, mas hão-de comportar-se sempre como possíveis. O não à possibilidade em nome do absoluto é uma invenção espanhola que tornou a vida social impossível. Sem possibilidade não há evolução. A simplicíssima ameba contém em si todo um mundo de variáveis; contém o mundo. As grandes verdades são a luz, mas precisam do foco possível que as oriente de acordo com a necessidade e a hora.
Tudo isto assente no início da reflexão, pergunto-me que conteúdo de ameba dinâmica e, portanto, com futuro há no Sr. Rubalcaba, ministro da Polícia, que proferiu a seguinte frase: «Se alguém está a pensar solicitar a legalização - fala do Batasuna - aproveitando um distanciamento da violência mais ou menos explícito, a resposta vai ser não. Há que dizer ao Batasuna com toda a veemência que jamais voltará às instituições enquanto a ETA continuar viva».
A possibilidade, como motor de «encontro na verdade», segundo o teólogo Brunner, deixou de existir para o Sr. Rubalcaba. A vida basca fica reduzida a uma opção de sofrimento ou a uma morte por asfixia. Ou, o que vai dar ao mesmo, o ministro acaba de reinventar, na absoluta solidão do seu deserto intelectual, a violência absoluta como única tangente com o adversário. Nem sequer permite que um juiz proceda a uma vivificante aplicação da lei buscando uma possibilidade de futuro.
Diz a esse respeito o Sr. Rubalcaba: «Nem legalização nem diálogo. A situação é ou ETA abandona ou as forças de segurança, juízes e magistrados fá-la-ão abandonar». O senhor ministro não acha necessário que os juízes e os magistrados tenham na sua alma a dimensão do possível. Os magistrados e os juízes são absolutamente seus, como arguentes desossados.
O principal perfil da possibilidade é o respeito pela liberdade. A liberdade é um valor absoluto, mas com certas e por vezes difíceis possibilidades de realização, já que a atribuição de propriedade torna impossível essa liberdade. A frase que desmascarou o cadáver político que a Transição trazia dentro foi pronunciada pelo Sr. Fraga Iribarne em 1976 quando proibiu a manifestação do Primeiro de Maio: «A rua é minha», disse o ministro. Era a absorção da possibilidade pela apropriação absoluta do horizonte humano. Depois disso ocorreram os acontecimentos de Gasteiz, com cinco operários mortos pela polícia e mais de cem feridos; a «Operação Reconquista» ou acontecimentos de Montejurra, com dois mortos; as actuações dos Esquadrões da Morte no Sul de França, com o apoio da Polícia e da Guarda Civil... Agora, um executivo do Sr. Rubalcaba em Euskadi, o Sr. López, voltou a renovar essa determinação: «A rua é nossa», disse o actual lehendakari. É, pois, uma rua sem possibilidades ao ser declarada «nossa». Nossa? Mas de quem? Quem foram os que decidiram retirar à rua a sua riqueza de possibilidades? Já não é um só, o Sr. Fraga, mas são mais, mas quantos mais? Multiplicam-se como os gremlins, talvez incitados pelas mangueiras da polícia.
O esgotamento das possibilidades de pensamento e de vida cresce já exponencialmente e a política regressa à norma que nunca, desde a morte de Franco, deixou de funcionar. Uma política que em relação a Euskadi não encontra justificação na repressão mecânica da violência, pois ao fim e ao cabo também não é isso que se persegue. Não; não se trata de fazer frente, ainda que torpemente, à violência. Nem pouco mais ou menos. Esconde-se certamente por trás destas palavras: «Nem legalização nem diálogo». Aí está a chave da situação, que começa a sepultar o ministro sob o fracasso.
O problema é a liberdade de Euskadi, as possibilidades de Euskadi para buscar no seu próprio ser o caminho do futuro. Mas se não há diálogo nem legalização, que fazemos com esse gigantesco resíduo de nada em que transformaram o povo basco? A questão radica em que, liberta Euskadi, seguir-se-ia a Catalunya, e Espanha ficaria reduzida a umas terras incapazes para as possibilidades. Por isso clama o Sr. Rubalcaba: «Há que dizer ao Batasuna com toda a veemência que jamais voltará às instituições enquanto a ETA continuar viva». E por que é que o abertzalismo batasuno há-de ser detentor da única possibilidade da ETA? Porquê sustentar, a partir do Estado, que a ETA abarca toda a massa abertzale? Muitos bascos podem, e em Madrid sabem-no, sentir emoções nacionais que também sentem os militantes da ETA. Mas isso justifica que postular possibilidades políticas de soberania ou, pelo menos, de autodeterminação possa ser alvo de identificação no modo da luta?
Podia ser que os abertzales do Batasuna não se vissem no espelho militar da ETA mas que, pelo contrário, fossem muitos os integrantes da ETA a contemplar-se no espelho ideológico do Batasuna. A luta armada que a ETA proclama não originou esse abertzalismo, anterior no tempo. O poder político do Batasuna nasce de uma fonte própria, uma fonte territorial, da qual cabe dizer, com Antxon Lafont Mendizabal, que «o direito de cidadania, expressão infelizmente em desuso, é o conjunto de direitos públicos e privados que os cidadãos possuem segundo o território a que pertencem. Uma das características culturais da cidadania, a solidariedade, como se pode desenvolver sem o conceito colectivo de identidade natural?».
Renunciar à possibilidade em política equivale a dissolver a política, ao negar-lhe o acesso ao campo interminável da ideação ideológica, à possibilidade da invenção de métodos, formas e conteúdos. Se se apregoa a democracia, também não se pode dizer que é preciso distinguir entre «a liberdade de expressão e o apoio disfarçado à violência». Onde se instala intelectual e moralmente essa fronteira? Quem é capaz de distinguir, se quiser protagonizar uma política de possibilidades, o que é o apoio disfarçado à violência? É trabalhoso andar por esses caminhos das distinções sem cair na própria armadilha: porque não se pode qualificar também de violência disfarçada - e, não poucas vezes, aberta - a supressão de emoções nacionais ou pretensão de direitos? Mais ainda, eliminar a possibilidade ideológica é uma forma tangível de violência que instiga à regressão social. Os mesmos cidadãos não o são como tal sem exercer a sua possibilidade, que há-de ser ilimitada, já que estabelecer um limite para a possibilidade cria uma realidade logicamente impossível.
Madrid fala constantemente em protagonizar um Estado garantista. Talvez um Estado garantista se possa explicar pela sua acção autoprotectora - o Estado garante-se a si mesmo face às possibilidades da sociedade -, mas esse Estado não é um garante das liberdades dos cidadãos. Mais ainda, mediante essa autodefesa o Estado declara-se em conflito com a sociedade, nega-a na sua substância, tritura-a nas suas manifestações. Se aceitarmos esta argumentação básica, chegamos à conclusão de que a nação basca vive sem garantias, sem possibilidades de realização e de defesa. É uma sociedade que não serve para alojar cidadãos, apenas súbditos. Isto deveria ser evitado pelo actual governo de Euskadi, porque por aí está a esgotar a sua existência como aquele governo.
Madrid está a agir com menosprezo para Lakua. Serve-se do basco como isco para pescar noutras zonas pesqueiras. A supressão das liberdades bascas - abordada ainda com uma intensidade que denuncia o seu conteúdo e a sua raiz - talvez ajude Madrid a comprar aos espanhóis a sua sujeição secular. Por aí, sim, pode-se explicar muitas coisas.
Antonio ALVAREZ-SOLIS
jornalista
Na política pode-se renunciar a tudo, menos à possibilidade. Porque a política é a possibilidade; a capacidade de instaurar realidades. A liberdade. Os valores são absolutos, mas hão-de comportar-se sempre como possíveis. O não à possibilidade em nome do absoluto é uma invenção espanhola que tornou a vida social impossível. Sem possibilidade não há evolução. A simplicíssima ameba contém em si todo um mundo de variáveis; contém o mundo. As grandes verdades são a luz, mas precisam do foco possível que as oriente de acordo com a necessidade e a hora.
Tudo isto assente no início da reflexão, pergunto-me que conteúdo de ameba dinâmica e, portanto, com futuro há no Sr. Rubalcaba, ministro da Polícia, que proferiu a seguinte frase: «Se alguém está a pensar solicitar a legalização - fala do Batasuna - aproveitando um distanciamento da violência mais ou menos explícito, a resposta vai ser não. Há que dizer ao Batasuna com toda a veemência que jamais voltará às instituições enquanto a ETA continuar viva».
A possibilidade, como motor de «encontro na verdade», segundo o teólogo Brunner, deixou de existir para o Sr. Rubalcaba. A vida basca fica reduzida a uma opção de sofrimento ou a uma morte por asfixia. Ou, o que vai dar ao mesmo, o ministro acaba de reinventar, na absoluta solidão do seu deserto intelectual, a violência absoluta como única tangente com o adversário. Nem sequer permite que um juiz proceda a uma vivificante aplicação da lei buscando uma possibilidade de futuro.
Diz a esse respeito o Sr. Rubalcaba: «Nem legalização nem diálogo. A situação é ou ETA abandona ou as forças de segurança, juízes e magistrados fá-la-ão abandonar». O senhor ministro não acha necessário que os juízes e os magistrados tenham na sua alma a dimensão do possível. Os magistrados e os juízes são absolutamente seus, como arguentes desossados.
O principal perfil da possibilidade é o respeito pela liberdade. A liberdade é um valor absoluto, mas com certas e por vezes difíceis possibilidades de realização, já que a atribuição de propriedade torna impossível essa liberdade. A frase que desmascarou o cadáver político que a Transição trazia dentro foi pronunciada pelo Sr. Fraga Iribarne em 1976 quando proibiu a manifestação do Primeiro de Maio: «A rua é minha», disse o ministro. Era a absorção da possibilidade pela apropriação absoluta do horizonte humano. Depois disso ocorreram os acontecimentos de Gasteiz, com cinco operários mortos pela polícia e mais de cem feridos; a «Operação Reconquista» ou acontecimentos de Montejurra, com dois mortos; as actuações dos Esquadrões da Morte no Sul de França, com o apoio da Polícia e da Guarda Civil... Agora, um executivo do Sr. Rubalcaba em Euskadi, o Sr. López, voltou a renovar essa determinação: «A rua é nossa», disse o actual lehendakari. É, pois, uma rua sem possibilidades ao ser declarada «nossa». Nossa? Mas de quem? Quem foram os que decidiram retirar à rua a sua riqueza de possibilidades? Já não é um só, o Sr. Fraga, mas são mais, mas quantos mais? Multiplicam-se como os gremlins, talvez incitados pelas mangueiras da polícia.
O esgotamento das possibilidades de pensamento e de vida cresce já exponencialmente e a política regressa à norma que nunca, desde a morte de Franco, deixou de funcionar. Uma política que em relação a Euskadi não encontra justificação na repressão mecânica da violência, pois ao fim e ao cabo também não é isso que se persegue. Não; não se trata de fazer frente, ainda que torpemente, à violência. Nem pouco mais ou menos. Esconde-se certamente por trás destas palavras: «Nem legalização nem diálogo». Aí está a chave da situação, que começa a sepultar o ministro sob o fracasso.
O problema é a liberdade de Euskadi, as possibilidades de Euskadi para buscar no seu próprio ser o caminho do futuro. Mas se não há diálogo nem legalização, que fazemos com esse gigantesco resíduo de nada em que transformaram o povo basco? A questão radica em que, liberta Euskadi, seguir-se-ia a Catalunya, e Espanha ficaria reduzida a umas terras incapazes para as possibilidades. Por isso clama o Sr. Rubalcaba: «Há que dizer ao Batasuna com toda a veemência que jamais voltará às instituições enquanto a ETA continuar viva». E por que é que o abertzalismo batasuno há-de ser detentor da única possibilidade da ETA? Porquê sustentar, a partir do Estado, que a ETA abarca toda a massa abertzale? Muitos bascos podem, e em Madrid sabem-no, sentir emoções nacionais que também sentem os militantes da ETA. Mas isso justifica que postular possibilidades políticas de soberania ou, pelo menos, de autodeterminação possa ser alvo de identificação no modo da luta?
Podia ser que os abertzales do Batasuna não se vissem no espelho militar da ETA mas que, pelo contrário, fossem muitos os integrantes da ETA a contemplar-se no espelho ideológico do Batasuna. A luta armada que a ETA proclama não originou esse abertzalismo, anterior no tempo. O poder político do Batasuna nasce de uma fonte própria, uma fonte territorial, da qual cabe dizer, com Antxon Lafont Mendizabal, que «o direito de cidadania, expressão infelizmente em desuso, é o conjunto de direitos públicos e privados que os cidadãos possuem segundo o território a que pertencem. Uma das características culturais da cidadania, a solidariedade, como se pode desenvolver sem o conceito colectivo de identidade natural?».
Renunciar à possibilidade em política equivale a dissolver a política, ao negar-lhe o acesso ao campo interminável da ideação ideológica, à possibilidade da invenção de métodos, formas e conteúdos. Se se apregoa a democracia, também não se pode dizer que é preciso distinguir entre «a liberdade de expressão e o apoio disfarçado à violência». Onde se instala intelectual e moralmente essa fronteira? Quem é capaz de distinguir, se quiser protagonizar uma política de possibilidades, o que é o apoio disfarçado à violência? É trabalhoso andar por esses caminhos das distinções sem cair na própria armadilha: porque não se pode qualificar também de violência disfarçada - e, não poucas vezes, aberta - a supressão de emoções nacionais ou pretensão de direitos? Mais ainda, eliminar a possibilidade ideológica é uma forma tangível de violência que instiga à regressão social. Os mesmos cidadãos não o são como tal sem exercer a sua possibilidade, que há-de ser ilimitada, já que estabelecer um limite para a possibilidade cria uma realidade logicamente impossível.
Madrid fala constantemente em protagonizar um Estado garantista. Talvez um Estado garantista se possa explicar pela sua acção autoprotectora - o Estado garante-se a si mesmo face às possibilidades da sociedade -, mas esse Estado não é um garante das liberdades dos cidadãos. Mais ainda, mediante essa autodefesa o Estado declara-se em conflito com a sociedade, nega-a na sua substância, tritura-a nas suas manifestações. Se aceitarmos esta argumentação básica, chegamos à conclusão de que a nação basca vive sem garantias, sem possibilidades de realização e de defesa. É uma sociedade que não serve para alojar cidadãos, apenas súbditos. Isto deveria ser evitado pelo actual governo de Euskadi, porque por aí está a esgotar a sua existência como aquele governo.
Madrid está a agir com menosprezo para Lakua. Serve-se do basco como isco para pescar noutras zonas pesqueiras. A supressão das liberdades bascas - abordada ainda com uma intensidade que denuncia o seu conteúdo e a sua raiz - talvez ajude Madrid a comprar aos espanhóis a sua sujeição secular. Por aí, sim, pode-se explicar muitas coisas.
Antonio ALVAREZ-SOLIS
jornalista
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Fonte: Gara