domingo, 9 de agosto de 2009

Vidas e vidas


O recrudescimento do conflito que Euskal Herria vive cobrou, nos últimos dias, a vida de várias pessoas, entre elas a de dois guardas civis e a do representante popular de Villabona Remi Ayestaran. E, entretanto, continua a não haver notícias do paradeiro do refugiado político Jon Anza. O autor do artigo reflecte sobre o reconhecimento do direito universal à vida e, em especial, da interpretação manhosa que o Estado espanhol dele faz quando repete até à saciedade o apoio às «vítimas do terrorismo» enquanto se esforça por punir os familiares dos presos - a quem Rodolfo Ares manifestou o seu «desprezo e repúdio» - por um único delito: reclamar uma vida digna para os seus familiares.

O reconhecimento do direito à vida tem lugar de destaque em convénios, pactos e tratados internacionais que ligam os Estados. A vida é garantida em termos absolutos. No entanto, o exercício deste direito é imediatamente relativizado. A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, depois de reconhecer o direito de qualquer pessoa à vida, indica que poderá haver excepções, como «em execução de uma sentença capital» ou quando a morte «resulte do recurso à força, tornado absolutamente necessário».

O Estado possui as suas vias de escape, pois, para condicionar a protecção do direito à vida. Também no quotidiano surge o dilema: nem todas as vidas são iguais e nem sempre se exerce nas mesmas condições materiais, a vida de uns é melhor e vale mais que a de outros. Pode-se comparar o valor da vida de uma criança na Faixa de Gaza com a do presidente - ou mesmo de um simples cantor - dos EUA? Mas há ainda outros princípios ou valores que se antepõem ao direito à vida, que a relativizam ainda mais: se só se pudesse tirar a carta de condução aos 25 anos, a mortalidade entre os condutores jovens diminuiria em 100%. Contudo, concebê-lo parece uma loucura porque temos interiorizada a prioridade de outros factores, como a liberdade de movimento ou o acesso a veículos motorizados. Prevalecem, pois, outros motivos que relativizam o direito à vida.

Aqui, as declarações institucionais de apoio a esse conglomerado conhecido como «vítimas do terrorismo» baseiam-se precisamente na atribuição de valor absoluto a umas vidas, enquanto o valor de outras é relativizado, quando não se denega absolutamente. Não se pode dizer que este posicionamento seja recíproco do outro «lado», porque nunca ouvi ninguém a negar o sofrimento humano que as acções armadas da ETA provocam.

Rodolfo Ares no entanto não tem qualquer problema em mostrar «desprezo e repúdio» pelos familiares dos presos, que unicamente reclamam condições de vida dignas para aqueles a quem querem e querem vivos. Na sua cruzada estival para retirar da vista as fotografias dos perseguidos por motivos políticos, justificada na defesa da dignidade e da memória de algumas vítimas do terrorismo, não procura outra coisa senão ocultar uma interpelação directa ao seu partido: que respeite o direito à vida dos presos bascos e derrogue um regime penitenciário que organizações internacionais adjectivam como cruel, inumano e degradante.

Também o PNV entra na liça com o anúncio de que os seus autarcas reorganizarão a iniciativa do Departamento do Interior, não porque a considerem uma má ideia, mas por acharem que o modo como o PSOE a gere é um mau trabalho. Urkullu entra em acção para «abordar a busca de medidas eficazes perante a falta de acção» do Governo López. Jokin Bildarratz, presidente da Eudel e autarca de Tolosa, terra com um arrepiante historial de violência de Estado, oportunamente remetido por ele ao esquecimento, é o palafreneiro mor nesta cavalgada para o abismo.

Quando é que a sensibilidade do PNV pelos afectados pela violência do Estado se desfez? Não existem familiares de presos, torturados, assassinados pelo terrorismo de Estado entre os seus simpatizantes? Que valor têm para eles essas vidas?

Num outro nível está a reacção de Pérez Rubalcaba. A sua capacidade para minimizar a gravidade dos factos e manipular as responsabilidades no caso do desaparecimento forçado de Jon Anza não conhece limites. Jon, devidamente desumanizado, coisificado, privado de qualquer sinal de dignidade humana, não é sequer merecedor da reacção mais básica: que se investigue o seu paradeiro.

Ao estilo do ditador argentino Videla, que justificava o desaparecimento de «subversivos», Rubalcaba considera que Jon, na sua condição de militante da ETA, não é digno do direito à vida. Esta atitude, a que se junta a tolerância perante a cada vez mais frequente irrupção de grupos parapoliciais para sequestrar, torturar e amedrontar pessoas ligadas à esquerda abertzale, não representa um acto de humilhação ou menosprezo para com o ser humano? As suas declarações - ou a falta delas noutros casos - não implicam uma justificação ou absolvição de quem comete estes actos? A vida aqui é um valor absoluto, como costuma ser a de outros?

Leio o Sr. Iñigo Lamarca a justificar-se no Gara face às críticas que partilho, vertidas contra o seu relatório. É que o Ararteko considera acertado não incluir no seu relatório casos de vítimas do terrorismo de Estado porque a Direcção de Vítimas do Governo Basco já se ocupa disso. Pretende assim evitar a duplicidade. Convém lembrar-lhe que as vítimas da ETA já obtiveram reconhecimento, reparação e reabilitação do órgão administrativo competente para levar a cabo esta missão: a justiça espanhola, encarnada na actuação da Audiência Nacional.

Outra coisa é que até eles considerem que esta justiça é de uma qualidade pestilenta e tenham como objectivo último reprimir ideais mais que dirimir verdades. Simplesmente tenho que lhe apontar, Sr. Lamarca, que o seu relatório servirá conscientemente para visualizar duas vezes uma parte do sofrimento, enquanto se esconde a triplicar a existência de outro: o de milhares de cidadãos cujos casos nunca serão investigados por essa administração de justiça, jamais incluídos nas declarações institucionais e atendidos de forma deficiente pelo seu gabinete. Defende exclusivamente quem «se encontra ameaçado de morte pela ETA».

Ao não incluir testemunhos de quem se vê ilegitimamente agredido pelo Estado na sua integridade física, não está, uma instituição supostamente independente e imparcial, mediadora entre o povo e as instituições, a incorrer em double standard, na mais absoluta arbitrariedade? Não relativiza o direito à vida? A enumeração no seu artigo das insultantemente escassas linhas de intervenção do seu gabinete em matéria de violação de direitos por parte das administrações públicas não faz mais que reforçar essa sensação.

Para além de atribuir deveres à sociedade e aos municípios bascos pela sua alegada tibieza perante as vítimas da ETA, você ergueu alguma vez a voz contra a obsessiva perseguição levada a cabo por Ares ou a crescente acção de grupos paramilitares (in)controlados? Promoveu, para além da declaração superficial no seu artigo do Gara, medidas concretas para que se «esclareça o desaparecimento de Jon Anza»? Exigiu-o nalgum outro meio de comunicação?

O tratamento tendencioso e desigual dado às sempre vítimas e aos sempre verdugos constitui mais uma forma de relativizar o direito à vida, cujo reconhecimento superficial se patenteia hoje mais que nunca. Os últimos acontecimentos vêm confirmar esta opinião: a morte de dois elementos da Guarda Civil e as subsequentes reacções altissonantes contrastaram com o mais absoluto silêncio e a ocultação dos motivos da morte de Remi Ayestaran, representante popular legítimo de Villabona. Os insultos monopolizam os títulos, retirando espaço à notícia. Continua-se, assim, a recusar uma solução justa para um conflito que continua a cobrar vidas e vidas.

Julen ARZUAGA
Giza Eskubideen Behatokia / Observatório de Direitos Humanos
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Fonte: Gara