domingo, 5 de abril de 2009

As provas silenciosas


Vivemos num mundo irreal, repleto de falácias, mentiras e, como diria um cineasta, fitas de vídeo. O matemático libanês Nassim Taleb recordava uma história que o romano Cícero contava há mais de dois mil anos. A um tal Diágoras, que não cria nos deuses, apresentaram-lhe umas tabuinhas de uns fiéis que sobreviveram a um naufrágio da maneira mais simples: a rezar. Da representação deduzia-se que a oração e a fé protegem uma pessoa da morte por afogamento. Acto seguido, Diágoras perguntou: “Onde estão as tabuinhas dos que oraram e depois se afogaram?”. Evidentemente, os mortos não falam, não existem milagres para eles.

Chama-se a esta demonstração o problema das provas silenciosas. Não vou inventar o seu significado, mas simplesmente evocar as suas interpretações, que são utilizadas sobretudo em Economia e em História. Estas não apresentam demasiada reserva depois da fábula de Cícero: fazemos história, do passado e do presente, com dois ou três dados que generalizamos, por vezes de maneira inconsciente e, com motivação política, de forma consciente. É mais o que desconhecemos que o que sabemos. As chamadas provas silenciosas deixariam de pantanas muitas das crenças dos nossos dias.

Remeto-me à actualidade para que o passado nos surja compreensível. Realizaram-se eleições para o Parlamento da Comunidade Autónoma Basca. Chamados às urnas eram 1 732 340 maiores de 18 anos. Uma cifra respeitável. O partido chamado a liderar a mudança obteve 315 893 votos, outra cifra importante. O conservador que anunciou o seu apoio alcançou 144 944. Entre ambos, os dois grandes contendores na gestão do Governo do Reino de Espanha teriam obtido 460 837, mais 22 002 se a essas formações se somasse os do projecto neofalangista da UPyD. Entre as três formações políticas, 27,8% dos chamados a votar. Uma cifra importante, novamente, que, no entanto, conduz ao cepticismo na interpretação política. Se nos ativéssemos aos comentários que escutámos e ouvimos em alguns meios, estaríamos na presença de uma revolução eleitoral e democrática, que nos aproximaria de um novo horizonte.

Aquelas que serão dentro de alguns anos provas silenciosas transmitem-nos, pelo contrário, um cenário afastado do real. Duas formações políticas viram proibida a sua participação na pugna eleitoral. Dirigentes de outras tantas foram previamente encarcerados, por vezes para evitar a sua regeneração. Alguns, sem pudor, foram postos em liberdade depois de se conhecer os resultados. A abstenção foi notória, também: 634 833 votantes não o quiseram ser. Não votaram. Se nesta altura se oculta o óbvio, que sucederá dentro de duas décadas, quando algum historiador interpretar o início da legislatura?

O presente está enviesado, e o passado também. Poucos interesses, mas poderosos, em geral económicos e em particular de hegemonia, participam na manutenção do status. As provas silenciosas estão aí. Conhecemo-las de sobra, são-nos ditadas pela lógica e, graças à estatística, sabemos que marcam o devir diário e colectivo como os buracos negros: não se vêem mas sentem-se. Se o presente se converte em passado, desaparecem.

Quando ocorreram em Madrid os atentados de 11 de Março, o partido então no Governo tentou silenciar a evidência, convertendo-se no paradigma de que a obliquidade na informação pode transformar-se numa função diabólica. Ainda ressoam as mentiras do “historiador” Jaime I. del Burgo, dando o aval às teses dos seus companheiros liderados pelo “estadista” J. M. Aznar. Até o Conselho das Nações Unidas manteve uma tese equivocada. As provas de facto foram convertidas em silenciosas e estas em evidências. O mundo ao contrário.

Com o 11 de Setembro nos EUA aconteceu outro paradoxo. Os acidentes automobilísticos aumentaram de uma maneira astronómica. Muita gente deixou-se contagiar pelo pânico de voar, o que fez que um número de pessoas pouco habitual se fizesse à estrada, em viagens normalmente longas. Os acidentes multiplicaram-se, sobretudo nos EUA, daí resultando que as vítimas indirectas dos atentados daquele 11 de Setembro fossem mais numerosas que as directas. Alguém imputou as mortes às companhias automobilísticas? As petrolíferas felicitaram Bin Laden? Os portageiros das auto-estradas borrifaram-se para os jihadistas? Não ouvi nada sobre esse tema. Se entrássemos nas guerras abertas por Washington a partir daquele dia, as vítimas multiplicar-se-iam espantosamente.

Com as vítimas existe, para além disso, um silêncio trabalhado. As chamadas “do terrorismo” completaram o ciclo que as organizações de direitos humanos definiram uma vez como imprescindível para fechar a ferida: verdade, justiça e reparação. Conhece-se, mais ou menos, a verdade sobre o ocorrido, através de toneladas de papel de investigação policial e judicial. Milhares de cidadãos foram encarcerados, alguns mesmo mortos, por isso. Foi-lhes aplicada a lei e o código penal. E, por fim, a reparação chegou pela via de indemnizações económicas e do reconhecimento institucional. Não é o caso, em consequência, do silêncio.

A partir daí, as restantes vítimas não existem. As do Estado jamais foram reconhecidas. Na sua época mais recente, quando a Comissão de Direitos Humanos do Parlamento Basco apresentou um relatório (Junho de 2008) em que apareciam 108 mortos e 538 feridos causados por forças policiais, militares ou paramilitares, nos últimos 30 anos, a reacção dos dois grupos que têm alternado no Governo central foi visceral. Chama a atenção a virulência com que foi tratado o director da referida Comissão. As hemerotecas são testemunhas.

Relativamente ao franquismo, a reacção de quem governa precisamente o Estado foi similar. Esquecimento, quer dizer, silêncio. Quando não há provas, quando algo fica sem justificação, finalmente diz-se que não existiu. É da lógica. Eu mesmo o assino. Como posso crer numa coisa ou interpretar algo de que não há registo? Como se se tratasse de objectos voadores não identificados, quem nos pode falar das dezenas de milhares de vítimas dessa época se o Estado, o que fez de verdugo, jamais as reconheceu como tal? As provas silenciosas esfumam-se a cada dia que passa, desaparecem engolidas pelo mais voraz dos exterminadores: o tempo. E aquelas vítimas hão-de sê-lo para sempre, com a agravante de que ninguém, jamais, lhes reconheceu a sua condição. Nunca terão acreditado a verdade, jamais se lhes fez justiça e, menos ainda, ninguém reparou naquela infâmia.

A indignidade sobe de tom quando filhos e netos dessa época são responsáveis pela ocultação de hoje. Uns por omissão e outros por alusão. Como no quadro de Goya, quando Saturno devorava um dos seus filhos, os da omissão esquecem o que aconteceu quando foram condenados ao exílio, à morte azul, como diria Fermín Valencia, ou às masmorras imundas. Um dos filhos é, precisamente, quem se levantou contra o seu pai Saturno e o devora para poder jogar no tabuleiro da troca política. Que vergonha!

Os da alusão, por outro lado, continuam a sua lógica. Renegaram tudo desde tempos imemoriais. Silenciaram quando era para o fazer e, se o guião conjuntural o exigia, fizeram-no de pistola em punho. Às vezes tenho a impressão de que somos uns privilegiados. E digo-o com muita precaução porque haverá mais de um e mais de mil que se enojem com esta impressão. Com razão. Digo que somos uns privilegiados porque, se ideias como as que defendemos nascessem noutros tempos, isso teria implicado a morte, a prisão ou o exílio. Para a maioria.

Há alguns dias deparei com o expediente que um “juiz” militar abriu a Bienvenida Aguirrezabala. A sua leitura encorajou-me a escrever este artigo sobre as provas silenciosas. Bienvenida foi detida em Tolosa. Cortaram-lhe o cabelo a pente zero como represália pela sua antipatia por Franco. De acordo com a sentença, “foi da dita terra para Bilbau e exibiu-se num teatro, valendo-se do corte de cabelo para contribuir para a campanha difamatória contra a Espanha Nacional”. A habitante de Tolosa foi condenada à prisão, por “adesão à rebelião”. Como é óbvio, o importante não era a repressão, mas que se soubesse dela. Como avançámos pouco!

Iñaki EGAÑA
historiador

Fonte: Gara