quinta-feira, 2 de abril de 2009

Sociedade política e sociedade basca


No contexto da formação do Governo de Lakua, Alvarez-Solís analisa a autonomização da política relativamente à sociedade. O jornalista madrileno vê certa semelhança entre o Decreto de Unificação ditado por Franco a 17 de Abril de 1937 e a situação actual.

É frequente neste tempo que a sociedade política não corresponda à sociedade real. As manobras das instituições – sejam do Estado, sejam dos partidos – invalidam com muita frequência os movimentos da sociedade real, incluindo os resultados eleitorais, que são postos de parte para dar lugar a jogos de poder previamente estabelecidos. O voto do cidadão não conduz à soberania. Mais que um mandato imperativo, esse voto transforma-se num salvo-conduto assinado em branco para operações que não têm nada a ver com a vontade da rua. Estamos, pois, em presença de um facto que parece indiscutível: as instituições autonomizaram-se relativamente à cidadania e evoluíram como um ser próprio, com capacidades cancerígenas.

Depois de morder a jugular nas urnas, o vampirismo institucional toma vida própria e forma uma sociedade de poderes que não brotam da base eleitoral mas que redefinem a rua à sua imagem e semelhança. Isto é, não é a rua que muda o poder, mas o poder que muda a rua. Este teratológico processo autogenerativo das instituições é possivelmente o causador mais importante de violência. As últimas eleições bascas constituem uma mostra reveladora de autonomização institucional. Entre o que votou a maioria dos cidadãos bascos e o que reflecte a constituição do Governo, fruto de um trasfego movido por uma vontade não democrática, há um abismo em cujo seio chocam as placas tectónicas da sociedade e do poder político. A energia que se desprende desta colisão transforma-se em mil categorias de violência.

O poder político não está encarnado, pois, na rua; não se deduz dela. Tal coisa faz que a ordem social se torne impossível ao ser pervertida pela manipulação e que os movimentos populares dêem consequentemente mostras de um comportamento errante ao perder a sua representação institucional e procedam com urgências perfeitamente explicáveis. O resultado é um contacto emaranhado e cada vez mais difícil entre as instituições e as massas. Consequência disso é também que os governos resolvam as suas dificuldades políticas com diversas instâncias de repressão entre as quais figuram o corrompido mecanismo policial, o uso impúdico dos tribunais e a produção de leis circunstanciais que na devida altura não foram apresentadas programaticamente ao eleitorado. Tudo isto multiplica o conflito social até o tornar permanente. Por outro lado, a justificação dos insolentes e torcidos procedimentos governamentais perde substância moral e transforma-se numa pura cantilena sobre o terrorismo com a qual se adjectiva qualquer protesto da cidadania que foi empurrada inevitavelmente para o limite.

Se se fizer uma recensão pontual das literaturas governamentais cozidas neste forno do poder, não é difícil encontrar nelas semelhanças que nos levem a constatar sempre um exercício da ditadura sob a capa de altos interesses nacionais, manejados hipocritamente com a vista posta na eliminação do inimigo externo, neste caso o adversário nacionalista. A actual união de “populares” e socialistas em Euskadi vê-se sugerida, por exemplo, no Decreto de Unificação ditado por Franco a 17 de Abril de 1937 para colocar sob o mesmo jugo dois adversários irreconciliáveis: falangistas e tradicionalistas navarros, que se puseram ao serviço do ditador, e no caso que analisamos, ao serviço do Governo de Madrid. Vejamos este parágrafo do Decreto citado: “Sendo uno o sentir das organizações, análoga a inquietude patriótica que as anima, apoiada pela ânsia com que Espanha a espera, não deve esta atrasar-se mais. Por isso, fundidas as suas virtudes, estas duas grandes forças tradicionais tornam a sua presença directa e solidária com o serviço do Estado”.

Estamos, portanto, perante a existência real de um partido único, cujo objectivo fundamental é evitar a expressão da liberdade basca. Um partido que, para encaixar bem as suas peças, se declara como ente de centralidade – ah, a sustentabilidade! –, o que desvela ainda mais o seu propósito único de resgatar os três territórios históricos na sua qualidade de simples região espanhola. Bakunin faz a seguinte e inteligente observação a esse respeito: “O partido do Justo Meio Termo não é conciliável com o movimento dialéctico da história que, ao acentuar a oposição entre os contrários, suprime os partidos intermédios. Agora bem, que fazem os ‘mediadores’? Vêem, como nós, que a nossa época é uma época de oposição, mas advertem-nos que esta rotura interna é má, mas, em vez de acentuar a dita oposição para fazer dela uma realidade nova, positiva e orgânica, esforçam-se por perpetuá-la na sua forma actual, precária e medíocre. Despojam a oposição do espírito activo que a anima – no caso basco, da sua possibilidade nacionalista (nota minha) – de modo a poder utilizá-la como bem entenderem”.

Estamos, pois, perante um divórcio radical entre instituições políticas, tal como vão ficar constituídas, e sociedade basca. Este divórcio é ainda mais acentuado com a mudança de linguagem dos socialistas nos últimos dias, que falam como se quisessem passar despercebidos e, em sentido inverso, a acentuação vitoriosa da linguagem que empregam os “populares”. Entendo que para os dirigentes do PSE seja um ingrato exercício moral referir-se à sua união com o PP, enquanto para estes últimos a situação os compensa da sua complicada e já longa oposição no parlamento espanhol. Mais ainda, a operação unionista em Euskadi torna transparente a debilidade crescente do partido do Sr. Zapatero, que colecciona, já com certo ritmo vertiginoso, fracasso após fracasso e ambiguidade após ambiguidade. Há na operação constitucionalista basca como que um propósito de adormecer o PP, como se a fera ficasse anestesiada com uma noite de esplendor no circo. O PSE só voltaria a flutuar neste naufrágio, embora com dificuldades imensas, se se tornasse independente do PSOE, mas terá o Sr. Patxi López personalidade para sequer o tentar? O Sr. López sabe que a sua única esperança para se tornar visível na Lehendakaritza é que Madrid manifeste uma certa prodigalidade em ajudas materiais a Gasteiz, mas a crise que aperta o executivo madrileno não é uma boa pista de lançamento para organizar esta festa de Reis Magos. Não há ouro nem mirra nos alforges estatais; se tanto, restos de um incenso que cheira a velho e caduco. Mais ainda, se no actual momento Madrid iniciasse o envio de ajudas como uma ONG encarregada de dar ao centralismo em Euskadi um ar de festa, muitas outras Comunidades espanholas arderiam de raiva perante o agravo comparativo. Creio que o Sr. López tem consciência da situação e falou pela boca do Sr. Ares, creio, quando adiantou que o futuro socialista basco vai ser difícil.

Pessoa que muito estimo fez-me notar que há no meu temor por um aumento da violência em terras bascas, em consequência dos incríveis sucessos políticos que estão a acontecer, uma certa desesperança lúgubre. Não creio, sinceramente, que esteja o meu receio alimentado por uma razão descomposta. Penso, preocupado, que prever uma agitação grave em terras bascas pertence à prática de uma lógica elementar, que se sobrepõe a toda esperança benéfica. Se o nacionalismo tivesse sido derrotado em número de votos totais, poderia abrigar-se no meu outro tipo de conjectura, mas presumo que o contraste estabelecido entre o resultado das urnas e o guisado governamental basco projecta a sombra de uma agitação cujos limites são difíceis de estabelecer agora.

Antonio ALVAREZ-SOLÍS
jornalista

Fonte: Gara

Estaremos aqui amanhã se alguma notícia de relevo o justificar. Caso tal não se verifique, a ASEH, amanhã, sexta-feira, 3 de Abril de 2009, está de folga.

Um abraço solidário e de coragem para todos os presos políticos bascos, seus familiares e amigos, nos 20 anos da política criminosa da dispersão. Um especial para Hodei, de Etxarri, e seus familiares, e uma saudação de "eutsi gogor" para os jovens (muito jovens) recentemente detidos em mais uma operação preventiva "à espanhola", em Hernani e Urnieta, e para os seus familiares.