quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Povo que canta não morre

Naquelas terras da minha infância gastava-se pouco e cantava-se muito. As moças cantarolavam as cantigas da moda enquanto estendiam a roupa e os lavradores - quando o trabalho o permitia - exibiam as suas vozes afinadas. Aquela paixão pelo canto possuía vistosas expressões grupais: juntos cantavam os auroros que nos despertavam com os seus arpejos ou a mocina que, reunida na praça, fazia da sobremesa festiva uma exibição polifónica. Quatro sardinhas velhas, umas malaguetas e alguns tragos eram suficientes para que as tabernas se transformassem num arremedo pobre do Odeón.

A paixão pelo canto que eu conheci naquela Nafarroa rural estava muito arraigada em toda Euskal Herria: Olentzero, as rondas de Ano Velho, Santa Águeda, as pastorais… A velha paixão pelo canto facilitou a eclosão coral que se deu em finais do século XIX. Ao nosso povo, que vivia então sob o trauma da recente usurpação foral, deu-lhe para cantar. Surgiu um importante movimento cultural que pretendia salvar com as artes o que nos tinham roubado com canhões e baionetas. Uns com a pena e outros com as colcheias defendiam a nossa identidade. No contexto urbano foram surgindo os orfeões, que desempenharam um importante papel político; o Orfeón Pamplonés transmitiu a Gernika a indignação navarra contra o espoliador ministro Gamazo. Surgiram também imensos coros que, naqueles tempos de dura confrontação identitária e ideológica, serviam para diferenciar os filhos de Sabino Arana dos de Pablo Iglesias; até estes possuíam um toque basquista e davam a conhecer as canções da terra. Superada aquela fase, a música coral foi um importante elemento aglutinador, para lá de siglas e tendências.

Jose Antonio Agirre, em Junho de 1937, pensou que estava tudo acabado. Quase como testamento, mandou que se organizassem coros para que - com as suas melodias - lembrassem ao mundo um povo «que morreu pela sua liberdade». Felizmente, a realidade não foi tão sombria. Com o passar dos anos, o euskara iniciou a sua recuperação e, com a língua, o canto. Os promotores das ikastolas costumavam andar pelas ruas a cantar na nossa língua e a socializá-la: «Jalgi hadi plazara» [Vem para a praça]. Há 14 anos, os euskaldunes de Biarritz iniciaram o «Kantuz kantu»; quase de imediato seguiram o seu exemplo as gentes de Baiona. A partir de 1998, Euskal Herria foi levada para um túnel repressivo que ainda continua. França e Espanha reactivaram a inquisição e deram quase por concluída a assimilação dos bascos. Estes, como em parecidas ocasiões, responderam cantando. Hoje são centenas os grupos que se reúnem de forma periódica para cantar pelas ruas em euskara: exercício colectivo de recuperação cultural, resposta à intolerância, encontro entre diferentes, terapia de grupo, reafirmação identitária, construção nacional… Kantuz não é a única, mas sim uma das colunas -harmoniosa e festiva - em que vai assentando a restauração do nosso Estado.

Em Nafarroa continua-se a dizer esta quadra: «Pueblo que canta, no muere / dicen que dijo el juglar / y, si es verdad lo que dijo, / Vasconia no morirá».

Jesus VALENCIA
Fonte: Gara via boltxe.info

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A propósito, Baionan Kantuz

Por ocasião do 13.º aniversário, festejado a 24 de Abril de 2010 na Lacarre plaza, em Baiona.