Julen LARRINAGA, condenado por militar nas Gestoras Pró-Amnistia, entrevistado por Gari MUJIKA
Nascido em Bilbau, conheceu desde jovem e na primeira pessoa – foi preso em duas ocasiões – o que viria depois a denunciar no âmbito do trabalho do Movimento Pró-Amnistia. Um trabalho que lhe valeu uma condenação de oito anos de prisão, imposta pelo tribunal especial de Madrid.
No dia 17 de Setembro, 25 cidadãos bascos deslocaram-se à Audiência Nacional espanhola para conhecer o veredicto condenatório que lhes foi imposto tanto a eles como às Gestoras Pró-Amnistia e à Askatasuna. Alguns, poucos, foram absolvidos; os restantes, condenados a vários anos de prisão. A maior parte foi encarcerada imediatamente depois de ser conhecida a sentença, mas alguns regressaram a casa. Julen Larrinaga é um deles. Encontra-se em Euskal Herria, mas não está parado; logo após o regresso, realizaram uma conferência de denúncia da condenação. E nesta entrevista transmite ao GARA a reflexão que fazem sobre a regressão democrática que Euskal Herria está a sofrer. Tudo isso, a cinco dias da manifestação nacional convocada para Bilbau.
Todos os acusados se deslocaram a Madrid com a “trouxa”. Alguns ficaram ali, e outros puderam regressar. Julen Larrinaga foi um destes últimos. Como se sente?
Bem, porque, claro, eu estou cá fora, mas isso não esconde sensações como a indignação perante o conteúdo da sentença e o modo se procedeu ao encarceramento de companheiros que, ao fim e ao cabo, estavam na mesma situação que os outros. Acrescentaram risco de fuga, quando era evidente que ele não existia.
Sinto, acima de tudo, indignação face ao conteúdo da sentença. No plano jurídico e também no político. Das três sentenças que emitiram até agora, após os macro-processos políticos na Audiência Nacional [os anteriores foram o «caso Jarrai-Haika-Segi» e o sumário 18/98], esta é a mais pobre em conteúdo jurídico, atingindo limites quase inesperados na individualização da condenação.
Na conferência posterior ao conhecimento da sentença, denunciaram casos de pessoas que foram encarceradas por se referirem aos presos como “presos políticos bascos”.
Exactamente. Bastou-lhes terem-nos reconhecido como militantes das Gestoras. E, para reforçar esse elemento – porque o Supremo tem uma doutrina segundo a qual as declarações de um acusado não são suficientes –, acrescentam-se aspectos que aparecem na sentença: “Assume-se como membro das Gestoras, mas fala de presos políticos bascos, ou que no Estado espanhol existe a tortura, ou denuncia a situação de liberdades democráticas”. É ridículo, porque desde o primeiro dia assumimos que éramos militantes das Gestoras, assumimos as razões que nos levaram a militar e reconhecemos o modo como militámos.
E, para individualizar o delito, para eles também é válida uma conversa telefónica em que se diz: “O sistema de som não funciona”. E põe-se isso numa sentença! São elementos de uma pobreza incrível.
Mas a sentença também deixa de lado as acusações de Garzón.
Sim, põe de parte os dez pontos da sua teoria do «tudo é ETA». Mas diz que há “uma confluência ideológica”, e, com base nisso, diz que as Gestoras são parte da ETA.
Chega a uma conclusão impressionante: não provam nenhum ponto da acusação, mas com todos esses elementos existe, sim, uma confluência ideológica com a ETA num objectivo final, que é “a derrocada de Espanha no País Basco e a superação do marco constitucional”. Mas… quem é que não pode estar nessa confluência? Nesses parâmetros, qualquer um. Até Ibarretxe. Fica em aberto todo um leque de actuações.
Que a sentença estava decidida de antemão, já vinha a denunciar desde o primeiro dia...
Temos a convicção de que responde a uma decisão de Estado: empreender uma via global de criminalização, ilegalização e perseguição primeiramente contra a esquerda abertzale, mas, com o efeito do acordeão, deixando a porta aberta para arremeter contra outros sectores do país. Por isso dizemos que não se vai quebrar a corrente da ilegalização; não vai haver um tribunal que estabeleça o contrário, porque o Estado não lho vai permitir.
De certo modo, ao recusarem a clássica defesa jurídica, também se abriu uma nova via, ou não é assim?
Para que a resposta siga em linha ascendente, para uma maior eficácia na denúncia política, entendemos que não se podiam repetir os mesmos esquemas. Apostámos na subida da fasquia e em centrar todo o peso na denúncia política, porque pensávamos que, de outra forma, se estaria a alimentar um falso debate, que é o que interessa ao Estado: põem-te à defesa para que mostres que tens direito a funcionar politicamente. E isso é inaceitável. O exercício dos direitos civis e políticos não pode ser fiscalizado por um tribunal especial. Queríamos situar o debate aí, na ilegalidade da actuação repressiva do Estado.
Além disso, o primeiro que aceitou mal esta rejeição à defesa jurídica foi o próprio tribunal. Ficaram realmente incomodados. Sentiram-se atacados e isso obrigou-os a jogar à defesa, como se evidenciou no primeiro dia da audiência, quando a presidente tomou a palavra para dizer que “aqui não se está a julgar o tribunal nem o Estado, recordo-lhes que os estamos a julgar a vocês”. Isso repetiu-se no final do julgamento, quando o procurador dedicou grande parte das alegações finais a desprestigiar a nossa decisão.
Alguns meios de comunicação espanhóis referiram que a sentença foi ouvida sem protestos. Ao que parece, esperavam outra coisa.
Numa linha coerente com a decisão que tomámos, independentemente da leitura que fazemos destes tribunais de excepção, decidimos ir até lá não para o legitimar, mas para demonstrar por que deve ser encerrado. Jogar no terreno deles, mas para continuar com a denúncia política.
Seria contraditório falar da Audiência Nacional durante 30 anos e depois, quando temos a oportunidade de o afirmar no próprio tribunal, calarmo-nos. Fomos mostrar que nenhum perseguido irá ficar sozinho e que continuaremos a dar a cara. Engana-se aquele que pensa que, por causa de uma sentença, o Movimento Pró-Amnistia vai desaparecer.
Antes de conhecer a sentença afirmaram que seria um “cheque em branco à repressão”. No regresso de Madrid, acrescentaram que se trata de um “cheque em branco sem cobertura”.
Dizemo-lo porque o Estado, esse sim, está a tentar fazer com que esse cheque tenha cobertura. Depois do processo, o Estado disse aos interlocutores do Batasuna aquilo do “vocês já vão ver”. Claro que estamos a ver! A sua aposta consiste em fechar todas as vias políticas e activar uma repressão brutal sobre o movimento independentista. E com uma mensagem implícita: “Isto é o que há: ou condenam a ETA e fazem política como vos digo, ou, caso contrário, não vos sobra nada”.
É nesse sentido que o Estado tenta fazer com que o cheque tenha cobertura: autorizar a repressão mais brutal como chantagem permanente às forças soberanistas na sua actuação política. E fá-lo expondo um debate que, ainda por cima, é falso: “Se condenarem a ETA, podem fazer política; enquanto não o fizerem, todos para a prisão”. Propõe-se um debate falso, porque tentar fazer uma leitura do conflito apenas sob o prisma da luta armada é algo de profundamente errado.
Cita a questão da condenação à ETA. Houve políticos que criticaram o facto de se pedir solidariedade para com os condenados das Gestoras e de não se censurar a organização armada.
É o slogan-armadilha do Governo. Em primeiro lugar, porque quer equiparar a violência da ETA à do Estado, quando não têm nada a ver. A ETA é clandestina e não está ligada a nenhum órgão de governo. O Governo tem, supostamente, uma margem de actuação democrática e deve estar submetido a poderes de controle, e tem recursos como os juízes, as polícias ou o Exército. A violência do Estado é muito mais eticamente imoral e democraticamente criticável que qualquer prática de uma organização clandestina. É inadmissível que se equipare a prática da tortura de um Estado à violência de uma organização clandestina. Nós denunciamos as violações de direitos de um órgão de poder.
Por que afirmam que se legitima a repressão?
Eles dizem que “há que abrir uma era de deslegitimação da violência”. Isso, para nós, é um eufemismo de legitimação da repressão. Assim, concebe-se um eixo ideológico que é a actuação do Estado de Direito, supondo que isso existe. E como tem lugar essa actuação? Criam alarme social, a nível ideológico, com os meios de comunicação, e depois mudam as leis. E fazem-no porque dominam o poder judicial, o legislativo e o executivo. Resguardam-se sob uma cobertura ideológica e actuam por via legal. Desde 1997, por exemplo, houve cerca de 27 alterações na legislação penal. E a isso chamam Estado de Direito.
Estruturar o colectivo de perseguidos políticos, o próximo desafio do Movimento Pró-Amnistia
Que perspectivas deixa a sentença para o Movimento Pró-Amnistia?
Deixa uma situação grave de criminalização, embora não seja nova. Não podemos ignorar que já temos sete anos de criminalização de facto, desde que Garzón decretou a suspensão de actividades, que é um eufemismo de ilegalização.
Agora, a diferença é que se abre uma via possível para que, com a sentença na mão, o Interior, nas suas duas versões, actue contra militantes a nível local. E esse é o novo salto que poderia suceder com a Askatasuna. Nessa senda, fica claro que chegarão outras e que acontecerá o mesmo.
Alternativas?
Não se pode conceber uma resposta frontal ante uma força bruta; tem que ser oblíqua, de denúncia política, de crítica. Considero que o problema reside na leitura global que o movimento popular tem que fazer. O problema é que se colocou um limite a cada uma das lutas populares sectoriais. É semelhante em todos. Tanto faz que seja meio ambiente ou euskara. Quando se projectam em todos os sectores certas dinâmicas, o limite é o mesmo. E, quando te passas dos carretos, “dão-te” com os mesmos elementos com que estão a atacar a esquerda abertzale, sejas tu quem fores.
A leitura tem que ser sobre o que há a fazer enquanto movimento popular, cada qual no seu âmbito, para acabar com este autoritarismo, com esta imposição. Era importante fazer uma leitura ou uma actuação conjunta que se transforme em luta ideológica e de massas. Porque é um problema de deterioração da situação democrática, e há que juntar forças para pôr limites a essa repressão.
E quanto ao Movimento Pró-Amnistia, especificamente?
Cremos que há-de passar pela sua própria estruturação, a falar dos perseguidos. Perseguidos entendidos como presos, ex-presos, familiares de presos, gente que experimentou a prática da tortura no seu corpo, detenções, ilegalizações, julgamentos, deportações... É preciso explicar que aqui existe um colectivo de perseguidos composto por milhares de pessoas, e que também exigimos uma reparação histórica. E isso dá-nos possibilidades para enfrentar ideologicamente essa leitura parcial e unilateral das vítimas. A memória histórica, que o seja para todos.