quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A ‘ciega’

Há já muitos anos, séculos quase eternos, quando o conde de Lerín atacou várias localidades defendidas por navarros fiéis à sua coroa, um sacerdote de Mendavia preocupou-se com alguns dos seus vizinhos encerrados pelo conde numa ciega do castelo de Tudela. O encontro do clérigo deu-nos conta da dureza da estadia: “quatro requereram-me que lhes desse os Santos Sacramentos. Um outro, estando a falar com eles, caiu sobre os restantes e ficou como amortecido”. A ciega era uma espécie de buraco subterrâneo, terrível, sem resquícios, de muros ásperos. “Obscuro e frio”, como diria Dostoievsky. O inferno. O euskara adoptou-a de imediato e, assim, ziega é cela.

A relação dos bascos com a obscuridade da ciega é, diria eu, perpétua. Já sei que o passado apenas conta para os vivos, que rapidamente serão, também, passado. Pó. Resisto, contudo, a deixá-lo abandonado entre as letras de livros apinhados em estantes com cheiro a tinta ou a verniz especiado. Esse passado, cheio de histórias tristes apinhadas, que guardamos numa caixita que embalamos quando a nostalgia nos aborda sem aviso. É o vaivém da vida e da morte, ou dos tempos de paz e de guerra. E não vou falar das irracionalidades judiciais e penitenciárias, que as há aos montes, mas apenas dos excessos.

Esta noite, de modo inesperado, assaltou-me a nostalgia da ciega, a mesma que me transmitiram os meus antepassados mais queridos, os meus amigos mais preciosos. Foucault, cujas reflexões admiro, comparou a escola, o quartel e o hospício com a prisão, e não posso menos que rejeitar a sua proposta quando, movido pelas lembranças, me chega o alento fugaz de Joxe Mari Sagardui. Que há de pior? Detido em Julho de 1980, quando outro padre, este não de Mendavia mas de Fruniz, apanhava o avião para visitar os seus missionários no Zaire. Naquela época e, permitam-me a expressão, um pouco mais abaixo no mapa (Zâmbia e Bostwana pelo meio), o preso por excelência da nossa geração, o prisioneiro 466-64 Nelson Mandela, estava a três semanas de cumprir 18 anos de encarceramento. Recentemente, o padre de Fruniz, Juan María Uriarte, bispo, apresentou a sua demissão no Vaticano. Jubila-se. Mandela abandonou o presídio em 1990 e quatro anos mais tarde foi presidente em Pretória. Sagardui, de Zornotza, 28 anos depois, continua preso. E não exactamente na ciega de Tudela, mas na da terra cantada por Miguel Hernández, preso e poeta.

“Não, não calem, porque a vergonha estaria no silêncio”, escreveu a seu pai em 1920 Bartolomeo Vanzetti, condenado à morte e executado por um verdugo embuçado. Quase me sinto obrigado a dizê-lo: jamais um colectivo de bascos penou um castigo de proporções semelhantes ao que estão a sofrer na actualidade cerca de 800 prisioneiros. Sagardui é, infelizmente para ele e os seus mais próximos, o mais veterano de uma batalha inacabada. Imaginam o que são 10 300 noites numa cela “obscura e fria”? No seu cativeiro, Mandela escreveu: “Na prisão estamos face a face com o passar do tempo. Não há nada de mais aterrador”. Escapa-me à compreensão e por isso tento remover essa pequena caixa da história para aceder a um recurso menos incómodo. Porque, às vezes, o ar torna-se insuportável.

E nessa pequena caixa semi-aberta oiço os sons das trombetas da cidadela de Pamplona, assediada e derrotada em 1512 pelas tropas do duque de Alba. Fugiram para lá dos Pirinéus muitos dos seus habitantes, e os detidos foram libertados um pouco mais tarde pelo primeiro vice-rei imposto, o marquês de Comares, sendo que, entre os espanhóis, a nobreza parece que obriga. Para a citar, unicamente, quase nunca para a exercitar. Em 1521, o ano de outro vice-rei, desta vez o conde de Miranda, a terra tingiu-se de vermelho em Noain. Pouco depois o rei castelhano aplicava o perdão real a todos os detidos, com excepção de 400. Um ano mais tarde, a excepção descia até 154 leais a Navarra. Morreram milhares de navarros, mas os sobreviventes apenas sofreram a prisão.

No século XIX tiveram lugar as guerras carlistas, choques bélicos que deixaram centenas de mortos no nosso país, embora não tantos como a peste ou a cólera. As carlistadas serviram para despovoar o país antes da grande irrupção migratória. Dizem que o exílio, o mal que congela, segundo a expressão de Sarrionandia, foi mais mortífero que a frente de batalha e, seguramente, com verdade. Morreram mais bascos na guerra civil de 1936, muitos mais, que nas duas guerras carlistas juntas. Para o exílio marcharam os que conseguiram salvar a vida. Na Primeira Guerra, por exemplo, entre 20 000 e 25 000 derrotados cruzaram a fronteira e foram internados em 16 campos de refugiados que as autoridades francesas abriram. Houve apenas prisão. Na Segunda Guerra os bascos seriam colocados em departamentos franceses afastados da fronteira. Antonio Cánovas, aquele que haveria de recordar a leveza do ser no atentado de Angiolillo, que acabou com a sua vida em Arrasate, em 1897, abriu as prisões e convidou os exilados a regressarem à Espanha triunfante, a liberal.

Continua a abrir-se a caixita do passado, enviando odores que me transportam para a Primeira Guerra Mundial, drama incalculável e nunca merecidamente interpretado para localidades, bairros e aldeias do nosso país continental. Milhares de compatriotas morreram por nada. Negaram-lhes a vida que começavam a decifrar. Apenas a prisão. Impiedade. Durante a Segunda Guerra Mundial a deportação e os campos de extermínio levaram várias centenas de jovens e adultos. A prisão para os colaboracionistas do regime hitleriano também não se destacou pelo seu rigor e, quando alguns sentiram a acumulação do tempo, De Gaulle promulgou a amnistia. As centenas de detidos a sul durante a chamada Revolução de Outubro de 1934 saíram em Fevereiro de 1936 pela porta grande dos presídios, ao som da Marselhesa e da Internacional, interpretadas pelas orquestras dos nossos municípios. Tinha ganho as eleições a Frente Popular.

Por estas alturas, a reflexão transporta-nos, precisamente, para essa guerra civil, que começou em Julho de 1936, após o golpe de Estado que dirigiu o governador militar de Iruñea. Cerca de 60 000 bascos foram julgados pela sua oposição à Direita, embora nem metade tenha ingressado na prisão de forma notória. É certo que os batalhões de trabalhadores foram um método de reclusão temporal e que a morte – “formosa é agora a sombra dessa morte”, escreveu Lauaxeta –, ceifou o futuro de 20 000 bascos, de ambos os lados. A prisão foi espectacular, mas não tanto como a que aplicam os administradores de hoje. Entre 1938 e 1958, ou seja, desde que se estruturou o sistema penitenciário franquista e o nascimento da ETA, etapa seguinte para a contabilidade, um total de 12 500 bascos passaram pela prisão.

Jacinto Ochoa Marticorena (Ujué, 1917-1999) foi a excepção e o preso basco que mais tempo esteve encarcerado. Saiu do presídio de Burgos em 1963, indultado por Franco após a morte do papa João XXIII. Estava preso havia 26 anos. De resto, nem sequer o maquis comunista Marcelo Usabiaga, que ainda está vivo para o contar, chegou aos 20 anos. A imensa maioria cumpriu uma pena inferior a seis anos, como Juan Ajuriaguerra, líder do PNV que negociou em Santoña a rendição do Exército basco e que saiu da prisão de Las Palmas de Grã-Canária a 20 de Julho de 1943. Falta de mão-de-obra e indultos (1940, 1961 e 1963) abriram as prisões.

O nascimento da ETA e das novas gerações políticas e sindicais, desde as CCOO até ao LAB, passando pelos IASE, LAIA, EMK, LKI ou qualquer dos grupos clássicos, também implicou prisão. Não posso escrever que era inevitável, porque pecaria por determinista, mas, dada a situação política, parece evidente que o era. Quando Franco morreu (20 de Novembro de 1975), havia nas prisões 731 presos políticos bascos, dos quais 104 eram mulheres. Entre eles, dois eram do PNV e um do PSOE. Quem for amigo de procurar raridades, que o faça em Sestao, Sopela e Amurrio, respectivamente. O resto dos presos, imagina-se bem em que siglas estavam integrados. Nem sequer os do Processo de Burgos, o paradigma daquela época, chegaram a cumprir dez anos de prisão.

As prisões voltaram a encher-se a partir de 1977. Até finais de 2007, ou seja, em 30 anos, 4700 cidadãos bascos foram encarcerados por razões políticas. Nessa mesma data, o número de prisioneiros que a Etxerat apresentava – a associação de familiares dos presos – era de 728. Uns meses mais tarde, a própria associação referia que 44 presos bascos estavam há mais de 20 anos na prisão e que 22 continuavam encarcerados apesar de terem cumprido toda a sua pena. “Não, não calem”, lembro Vanzetti. E a caixa do passado volta-me a repetir que jamais se tinha dado uma situação igual na história do nosso país.

Desta vez adiro a Foucault quando afirma que, com o tempo, os castigos se tornam mais refinados e extensos. Mas não me reconforta. Também não o faz quando intuo que, com a excepção da Rússia estalinista, a Europa não conheceu semelhante proporção durante o século XX. Nós, bascos, somos, infelizmente, a excepção. Fecho a caixita dos eflúvios do passado enquanto a tristeza convive com o desassossego. Enquanto escrevo isto, centenas de ciegas, “frias e obscuras”, servirão de refúgio a outros tantos compatriotas. “A janela aberta deixa passar entre os barrotes o alento da noite”, escrevia desde a prisão de Málaga o preso Josetxo Etxeberria. Que ser humano é capaz de organizar semelhante castigo? Só os monstros habitam no inferno, neste terceiro planeta do sistema solar. O padre de Mendavia contou-o há já muitos anos.

Iñaki EGAÑA

Fonte: Nabarralde