terça-feira, 9 de setembro de 2008

X Aniversário de Lizarra-Garazi


Dentro de poucos dias cumprir-se-á o décimo aniversário de um acordo, Lizarra-Garazi, que continua a marcar e a reflectir as chaves estruturais da vida política de Euskal Herria. Após a imposição constitucional-estatutária concebida à saída do franquismo, pela primeira vez forças políticas, sindicais e sociais convergem em princípios que apelam ao fim de um modelo de transição esgotado e à abertura de um ciclo político com base no reconhecimento nacional e no respeito pela vontade da cidadania de todos os territórios de Euskal Herria.

Com a independência das diferentes opções que cada qual concebeu no início da transição, chegamos a um momento em que uma maioria política, sindical e social reclama aos estados o encerramento de uma etapa e o encaminhamento de negociações e acordos que permitam a este país definir democraticamente, sem hipotecas nem condicionamentos de qualquer espécie e natureza, o seu estatuto político-institucional interno e externo. Quer dizer, Lizarra-Garazi é um ponto de inflexão para dar por acabado o modelo de assimilação progressiva imposto pelos estados à nação basca. O não reconhecimento nacional e a estruturação de uma descentralização administrativa, disfarçada de autonomias, no contexto de uma constituição que determina um sujeito impositivo e único sobre a cidadania basca, tinha marcado – em Hegoalde [País Basco Sul] – uma fase política que em Lizarra se apresenta esgotada.

Mas não só isso! Nesse momento, também pela primeira vez, realiza-se uma reflexão à escala nacional, que é um embrião de análise, de compromissos e de contribuições que vão trabalhando uma unidade territorial funcional por cima das diferentes realidades sociopolíticas e administrativas. Esta mudança qualitativa em pensamento e praxis política, cultural e socioeconómica será a chave para reunir as etapas transitórias que teremos que considerar futuramente no que diz respeito à territorialidade nacional basca.

A partir desta caracterização, e sem entrar a fundo nos muitos factos que povoam este período (tréguas, rupturas, ilegalizações, violências, mudanças de governo...), uma pergunta obrigatória: o que é que se passou desde aquele histórico momento? Eu resumi-lo-ia em duas grandes referências. Por um lado, desde o início, PP e PSOE responderam com a articulação de um muro institucional, jurídico e mediático para travar os conteúdos e as características da mudança política referente ao modelo institucional da transição. Em toda o período «Aznar» foi palpável essa estratégia “constitucionalista” para neutralizar, como dizia Mayor Oreja, a maior ofensiva nacionalista da história. Nessa mesma linha esteve e continua a estar o PSOE. Umas vezes a reboque do PP, e em certas ocasiões com iniciativa própria, para liderar os sectores mais reaccionários do neofranquismo instalado em muitos espaços do nacionalismo espanhol.

Com a chegada de Zapatero, esse “muro constitucional”, complementado com exacerbações artificiais do nacionalismo espanhol, caracteriza a sua posição de governo, embora tenha uma película exterior adornada de falsos humores e palavras ocas. Vimo-lo nestes últimos anos: o PSE-EE de Redondo disse não a Lizarra aliando-se ao PP; posteriormente, Zapatero deu uma valente nega ao Plano Ibarretxe em 2004; disse não a Loiola no contexto de uma situação de grande esperança na sociedade basca; rejeitou a mudança em Nafarroa, convertendo-se num acompanhante da estratégia da UPN-PP; e agora, mais uma vez, disse não ao modelo de consulta, gozando com a decisão do Parlamento de uma parte do território basco. E disse ainda não ao novo estatuto catalão ou ao modelo de financiamento específico para a Catalunya, para citar referências da actualidade.

Quer dizer, PSOE e PP continuam a utilizar um marco constitucional como prisão dos nossos direitos e hipoteca do desenvolvimento democrático da vontade da cidadania basca. Por que não querem dar a palavra à cidadania dos quatro herrialdes [territórios históricos]? De que têm medo? Os mesmos que se embebedam todos os dias de nacionalismo espanhol são os que nos negam ser bascos e decidir enquanto bascos no nosso próprio país, sequestrando a nossa vontade e agindo de acordo com o seu capricho político.

Por outro lado, como segunda grande referência, é palpável a incapacidade de sectores políticos, sindicais e sociais para condicionar esta estratégia de bloqueio do PP e do PSOE. Por trás da sintonia que existe sobre o esgotamento do marco vigente, sobre a sua esterilidade estratégica, existe também uma paralisia na acumulação e activação de forças em dimensões institucionais e sociais. É evidente que, para isso, o Estado atingiu com muita força a esquerda abertzale enquanto motor e dinamizador-chave da mudança política, mas globalmente, em jeito de balanço, temos de concluir que estamos ante uma crise de acumulação de forças olhando para o que foi Lizarra-Garazi como ponto de inflexão para outro ciclo político.

O Estado espanhol manteve a máxima de “resistir é vencer”, incidindo nas contradições internas do PNV e tentando resgatar este partido de uma correlação de forças Euskal Herria-estados que fazia oscilar o edifício constitucionalista. Como vemos, estão a consegui-lo, e, passando por cima do pensamento de sectores da base social do PNV, este partido aposta em ser mais um elo dentro de um modelo constitucional espanhol reformado mas com os mesmos princípios que negam o nosso reconhecimento e a nossa soberania. Mas também não lhes vai ser fácil venderem como um “passo em frente” reformas estatutárias assentes nas mesmas bases políticas. Isso se, entretanto, continuarem a brincar com conceitos e propostas – consulta – para ganhar dividendos eleitorais, com o que pretendem assegurar um poder político-institucional que lhes permita garantir a realização de negócios e os interesses das clientelas.

A partir desta visão macropolítica e com o sentido autocrítico aplicado a tantas coisas realizadas durante esta longa etapa de bloqueio e confrontação, há que enfatizar a necessidade de uma aposta na acumulação e na activação de forças que incentivem o entusiasmo e a participação de importantes sectores da sociedade basca. Nesta passagem entre dois ciclos políticos, com uma Euskal Herria a sofrer os efeitos das mudanças estruturais no terreno económico, social e cultural, num contexto de violação massiva de direitos civis dentro de uma grande arrogância espanholista, um grande sector abertzale e progressista de Euskal Herria, face à decantação estratégica que se percebe no PNV, tem que ter rumo para influir decisivamente no carácter da mudança política e social no nosso país.

Precisamos de libertar sinergias e de as pôr ao serviço de uma democracia política e social que abra as portas a uma nova Euskal Herria, a partir da superação urgente de um marco constitucional que nos afunda em todas as dimensões. Por isso, numa conjuntura em que o Estado actua com arrogância política, pretendendo condicionar o carácter da mudança e dos conteúdos de uma nova fase política, apelo ao espírito de Lizarra-Garazi para evitar fraudes estatutárias e assentar bases democráticas para o desenvolvimento em iguais condições de todos os projectos políticos, incluindo o independentista. Euskal Herriak dauka hitza eta erabakia! [O País Basco tem a palavra e a decisão]

Assim, Lizarra-Garazi vive e, além disso, estou convencido de que para dar continuidade a Anoeta (Loiola), para abordar acordos transversais que determinem um marco democrático para Euskal Herria, superando o conflito político e as suas trágicas consequências, será indispensável regenerar e/ou reformular, com maior projecção estratégica, um novo Lizarra-Garazi.

Rafa DIEZ USABIAGA
Ex-secretário geral do sindicato LAB

Fonte: rebelion