quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Causa Geral 2008: os herdeiros de Franco voltam a ilegalizar a ANV



Quando os fascistas ficaram com o poder no estado espanhol, depois de um frustrado golpe de estado, chegou o momento de passar a factura aos vencidos. A repressão começou logo a 18 de Julho (definiu-o explicitamente “o director” Emilio Mola: “Há que semear o terror, há que deixar a sensação de domínio eliminando sem escrúpulos nem vacilação todos os que não pensam como nós”), mas depois da vitória dos fascistas já liderados por Franco, isto é, franquistas, pôs-se em marcha um procedimento judicial especial contra os defensores da legalidade republicana. A sua designação: Causa Geral Instruída pelo Ministério Público sobre a dominação vermelha em Espanha, a que ficou conhecida como Causa Geral. Com esta e outras iniciativas, pretendia-se dar a volta à realidade e justificar os crimes fascistas como resposta a uma suposta rebelião dos republicanos!

Durante a ditadura (aquilo a que os “democratas espanhóis” chamam “regime anterior”) foi tudo Causa Geral, foi tudo repressão sumaríssima, o que, além de implicar a tortura massiva, as prisões repletas e o exílio de milhares de pessoas, significou a ilegalização de todas as forças políticas consideradas subversivas. Os inimigos a abater eram, sobretudo, a esquerda (especialmente o comunismo) e o “separatismo”.

A vitória de 1939 foi a do nacionalismo espanhol mais virulento e exclusivista, e bem ilustrativas sobre as intenções do franquismo relativamente à “questão nacional” são as palavras pronunciadas na Universidade de Salamanca pelo catedrático Francisco Maldonado de Guevara no «Dia da Raça» (12 de Outubro) de 1936: “A Catalunha e o País Basco, o País Basco e a Catalunha, são dois cancros no corpo da nação. O fascismo, remédio de Espanha, vem para os exterminar, cortando na carne viva como um cirurgião determinado”. O procurador Acedo, do exército de ocupação, falava na sua Memória escrita em 1939 da repressão sobre todas as “forças anti-espanholas”.

O fascista Areilza, convertido em autarca de Bilbau, disse-o com muita clareza no seu discurso de Julho de 1937: “Até agora, amigos, os polemistas podiam discutir em dialécticas estéreis sobre os supostos direitos da Biscaia à sua autonomia ou governo próprio. A partir de agora há uma razão que está acima de todas as argúcias históricas e de todas as papeladas da advocacia. A razão do sangue derramado pela Biscaia é outra vez um pedaço de Espanha por pura e simples conquista militar. A espada de Franco resolveu definitivamente o litígio das cúrias sobre o bizcaitarrismo (...)».

No estado criado pelos vencedores, forças como a Acção Nacionalista Basca ficaram à margem da lei e foram perseguidas. O mesmo se passou com o Partido Socialista Obrero Español, o mesmo que em Setembro de 2008 promoveu a ilegalização da ANV, com quem, para além de ter assinado documentos e pactos e trabalhado conjuntamente em diversos âmbitos, concorreu em coligação em vários territórios às eleições de 1936 dentro da Frente Popular. O PSOE, para colocar a ANV fora da lei, recorreu ao mesmo tribunal em cuja procuradoria assentou em 1940 a responsabilidade de instruir a Causa Geral.

Como se sabe, nem este nem nenhum outro tribunal espanhol foram purgados após a morte de Franco. Tudo graças a uma transição feita da lei para a lei, na expressão de Fernández Miranda. Os juízes franquistas foram-se reformando ou morrendo, mas nem um só foi castigado por participar na trama repressiva de uma ditadura fascista, para usar a qualificação da ONU em relação ao franquismo. Sirva como um mais dado para conhecer o emaranhado de ligações entre a magistratura “democrática” e o fascismo que um servidor foi julgado e condenado em 1997 por uma sala desse tribunal, da qual fazia parte um ex-governador franquista.

Existem muitos elementos para considerar que, na realidade, a Causa Geral continua a ser instruída em pleno século XXI contra as “forças anti-espanholas”. Mudam os nomes e as formas, certamente; agora não há Tribunal Especial para a Repressão da Maçonaria e do Comunismo nem Tribunal de Ordem Pública, mas temos a Audiência Nacional. Continua a existir uma legislação especial para os considerados inimigos do Estado, a que a “democracia”, do mesmo modo que o franquismo, chama terroristas.

Esta legislação inclui o regime de incomunicação, à sombra do qual se denunciam torturas arrepiantes. A informação obtida graças a estes mecanismos excepcionais serve para alimentar processos judiciais, da mesma forma que os dados obtidos mediante tortura ilustravam a Causa Geral. Os presos políticos sofrem medidas especiais de pressão, castigo e chantagem, afastados do seu meio e da sua família. O direito de manifestação está limitado e até existe uma legislação especial para ilegalizar partidos. E isto num estado em que os defensores do golpe de 1936 dispõem de plena liberdade para organizar partidos, concorrer às eleições e justificar publicamente os crimes fascistas.

Tudo isto, obviamente, nunca teria sido possível sem a cumplicidade das forças aparentemente antifranquistas, como o PCE e o PSOE, que conformaram o grande álibi dos franquistas para organizar uma transição que preservou intacto o legado do 18 de Julho.

Transição cujo principal escolho foi sempre Euskal Herria. Como referia um relatório confidencial do Conselho Provincial do Movimento em Gipuzkoa, em Septembro de 1972, “a resolução do problema do País Basco não admite nenhuma demora. Deve ser resolvido em vida do Caudilho. Se não se conseguisse eliminá-lo da herança política que irá receber o príncipe de Espanha ao cumprirem-se as previsões sucessórias, realizar-se-ia de tal forma nos primeiros tempos do seu reinado, o que exigiria uma resposta militar, com todos os riscos e condicionamentos que isso havia de implicar para o signo, definitivamente pacífico, que deve caracterizar a Monarquia do Movimento”.

Efectivamente, a herança política recebida por Juan Carlos, o expoente da Monarquia do Movimento, ficou marcada pela luta do povo basco, que se recusou a aceitar um simulacro de transição democrática que lhe continua a negar o direito a ser e a decidir. Hoje em dia, os herdeiros do 18 de Julho, tanto os que obedecem à tradição franquista como os que apanharam o comboio a partir do antifranquismo, tomam como um desafio a tenacidade da sociedade basca na defesa da sua identidade e dos seus direitos. Daí que todo o aparelho repressivo, toda a legislação de excepção e toda a máquina mediática tenham como prioridade acabar com o independentismo basco e evitar que Euskal Herria seja dona do seu destino.

Não houve ruptura com o franquismo, não saímos do ciclo histórico caracterizado por um estado de excepção constante contra aqueles que o nacionalismo espanhol considera seus inimigos. A ilegalização da ANV só se pode enquadrar neste contexto. Um panorama também marcado pela decisão recente do Tribunal Constitucional que reafirma o principio de que o único sujeito de decisão é Espanha. Outro princípio directamente herdado do franquismo, obcecado pela unidade do estado, como o próprio Franco se encarregou de transmitir ao seu sucessor no seu leito de morte.

Espanha não tem para Euskal Herria outra cara que não seja repressão, negação, exclusão. “Só eu existo (diz-nos Espanha); vocês, não; e não têm direito a decidir”. E, para acabar com as dúvidas, vincam-no à base de ilegalizações, julgamentos e proibições, que alguns que se dizem abertzales não hesitam em acatar e, inclusivamente, aplicar.

Agora, bem, que a indignação não turve a nossa análise. A intensificação da repressão pretende, como dizia Mola, “deixar sensação de domínio”. Mas, longe de o alcançar, cada passo que dão nesta espiral afasta um pouco mais Euskal Herria de Espanha. Quanto mais recorrem à repressão, mais debilitam a sua posição no nosso país, evidenciando que só se mantém pelo uso da força. A cada novo golpe, oferecem-nos uma razão mais para desejar a nossa independência.

Floren AOIZ
escritor

Fonte: Gara